Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, para muita gente, a banana é a fruta proibida do Paraíso. Fui atrás, claro, curiosa em desvendar a origem dessa história e encontrei informação de que também a uva tem seus defensores – ou seriam acusadores? Os argumentos em torno das duas frutas são convincentes e bem mundanos, digamos assim, e me intrigou a maçã se manter no tradicional posto até hoje. Afinal é a menos pecaminosa das três – e de todas as frutas existentes na face da Terra, justiça seja feita. Logo lembrei das aulas de catequese, dos preparatórios para a Primeira Comunhão e fez-se a luz.
Imagine a situação: professorinha casta dos anos 70, educada na moral da Igreja e dos bons costumes, já então uma jovem mamãe dedicada e esposa fidelíssima, ensinando aos seus inocentes pupilos – todos na faixa etária de oito, nove aninhos, sequer sonhavam com a revolução dos costumes deflagrada no mundo – que o fruto proibido crescia como um cacho de... pênis; ou que só uma fruta com destino no álcool poderia ter tentado o primeiro casal a desobedecer a Deus. Seria simplesmente um escândalo.
Assim, a maçã era a única fruta que podia chegar aos nossos ouvidos puros como um deslize do pobre Adão suscetível às investidas da destrambelhada Eva. Pois ao mesmo tempo em que nos ameaçavam com a intriga da cobra safada a se enroscar nas macieiras, nos ensinavam que foi o beijo de amor do Príncipe Encantado que tirou da boca da Branca de Neve o pedacinho de maçã envenenada pela Rainha invejosa; que a maçã do amor é partilhada por casais apaixonados (o que desafia toda e qualquer lógica do paladar, mas na época nem sabíamos da existência de paladar); que raspando de colherinha, você alimenta com a polpa o seu adorado bebê; que na colheita dos pomares da Bretanha existe a figura da mãe das maçãs, o símbolo da fertilidade e da boa sorte; que An apple a day keeps a doctor away; que as tortas de maçã são uma parte considerável da felicidade doméstica dos norte-americanos e as sobremesas mais apreciadas nos bistrôs (o segundo lar dos franceses); etc, etc, etc.
Mas depois daqueles cabeludos da paz e do amor terem feito tudo o que fizeram, era de se esperar que a maçã ficasse desacreditada nessa dualidade do bem e do mal. Pois nem deu tempo: os hábitos de vida mudaram tão vertiginosamente que ninguém mais sequer pensa no assunto. Entretanto, se algum dia voltarem a falar em fruto proibido, garanto que nem a banana e a uva serão lembradas, pois haverá franco consenso em torno da manga. Essa, sim, chega a ser indecente. Quer experimentar?
Descasque uma manga e sinta a delícia do tato com a sua carne firme, macia e morna, a textura lúbrica, o perfume doce e a cor dourada como o sol. Na primeira dentada você já começa a se lambuzar, os lábios, as bochechas e, daí pra frente, é um morde, chupa e lambe de proporções incontroláveis. No final, você está com as mãos, os pulsos, a boca e todo o rosto completamente molhados daquele suco viscoso. E saciada ao gosto do capeta. Logo, logo vem a sensação de culpa, porque no afã de devorá-la, as fibras se grudaram nos seus 32 dentes, sem exceção. Coisa de paixão avassaladora: o céu e o inferno em minutos.
Portanto, pra pecar nem é preciso desacatar a Deus, basta ir à cozinha. Ou melhor, agora que nenhum de nós é mais criança, coloque em prática o slogan de um verdureiro citado pela escritora inglesa Jane Grigson: “Partilhe a manga, no banho, com seu amado”. E a culpa que vá para o diabo que a carregue, com todo o respeito.
F I O DE A Z E I T E, F I O DE C O N T A S, F I O DE P A L A V R A S Variedades e dicas de cozinha para enfrentar o sufoco cotidiano.
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Descaminhos
Um manto sinistro disfarçado de noite descia sobre as raras pessoas nas ruas. Marina ainda estava a muitas quadras da pensão, um desses belos casarões do século XIX, e o Toque de Recolher alarmou nela apenas uma dor aguda muito particular. Continuou andando, lenta e inocentemente desafiadora sob o escudo invisível da juventude. Bateu à porta de duas folhas com vidros decorados do armazém de esquina e acenou para o velho que, ao levantar o olhar do balcão, contorceu uma expressão nada receptiva. Mas deixou-a entrar e, sem delongas, embrulhou com mãos trêmulas as empanadas, recomendando, grave, que acelerasse o passo direto à pensão.
O dia derramara um sol luxuoso em mais uma sombria primavera chilena e Marina flanara pelos arredores da Plaza de Armas. Visitara a Catedral Metropolitana e o prédio do Correio, aproveitando a caminhada para digerir o almoço no Mercado Central de Santiago. Desde Rio Grande ansiava ver de perto o picoroco. Estudara-o no curso de Oceanologia e se tinha ao menos um objetivo concreto naquela viagem, era ver o bicho esquisito ao vivo e, mais ainda, comer o crustáceo, ou o molusco, que o decidissem os biólogos. Carlos não acreditaria. Seria o seu trunfo especial na volta: mostrar a ele que se superava nos nojinhos e nas desilusões do amor.
Marina vivia um momento pós-descoberta da voz. Desde que o vidro da sua redoma tão bem arquitetada pelo pai se quebrara, quase sem que um dos dois percebesse, tivera aquele encontro inusitado com a sua geração fazendo sexo e política, apaixonadamente. Se aquilo era permitido ou não, pouco lhe intrigou e ela logo também se encorajou a clamar por ideais, que soaram mais como desabafos. E foi assim que, aos 18 anos, saltara com os olhos vendados para a vida, para o encanto do amor e a força do sexo, uma liberdade que jamais cogitara.
Agora, com a cabeça no travesseiro do país de Pinochet, o peito ardia era de saudade e melancolia. A procura de uma tábua de salvação, ela evocou o sabor da sopa de mariscos do mercado e a conversa com o trabalhador boliviano ilegal em Viña Del Mar. Simpatizara com o dente de ouro reluzindo no sorriso tímido e tentava visualizar o metal na dentadura perfeita de Carlos. Mas era impossível. Concentrou o pensamento no encontro marcado, justificando-se de que, afinal, o balneário estava no seu roteiro desde o planejamento da viagem.
Juan Carlos a buscou na rodoviária. Foram almoçar num boteco suspeito com vista estonteante do Pacífico. Gastaram as solas dos tênis pela cidade e até o porto de Valparaíso. Entendiam-se com tanta facilidade, uma amizade tão espontânea que parecia antiga, como se tivessem passado juntos a infância ou dividido o companheirismo de uma guerrilha utópica. Entre bobagens e risadas, a tarde evaporara. Foi quando Marina decidiu enclausurar Carlos num cantinho da sua mente e pernoitar ali.
O porteiro do hotelzinho olhou com estranheza o casal: ela, uma moça bonita de cabelos bem cuidados; ele, um rapaz mal-ajambrado. Conduziu-os a um quarto minúsculo que não recebia sol. Livraram os pés dos tênis e das meias e se deitaram à luz amarelada de um velho abajur. Quietos, sem se olhar, ele desabotoou a blusa dela e acariciou a pele macia das suas costas. Afastou o pano delicadamente e levou a boca ao seu seio e o sugou, metódico como um bebê. Ela virou estátua, a meio caminho entre prazer e sofrimento. Ele, percebendo suas lágrimas, adormeceu.
Ao raiar do dia, seguiram para a rodoviária em silêncio. Antes que Marina se afastasse para o embarque, o boliviano segurou no seu pulso e disse: “Si fueses mía, no te dejaria andar sola por ahí”. Marina o fitou com o olhar perdido dos que recém conheceram o amor e seus descaminhos. Sequer conseguiu esboçar um sorriso. Deu um passo na sua direção e encostou a sua face na dele, apertando-lhe suavemente o braço. E logo seguiu pela plataforma, tateando um regresso ao seu pequeno mundo desmoronado. Acomodou-se na poltrona no fundo do ônibus e, com os olhos boiando, pensou: a vida seria linda se, do outro lado da Cordilheira, Carlos ao menos uma vez deixasse Mercedes Sosa e cantasse aquela música que ela sonhava na voz dele: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.
O dia derramara um sol luxuoso em mais uma sombria primavera chilena e Marina flanara pelos arredores da Plaza de Armas. Visitara a Catedral Metropolitana e o prédio do Correio, aproveitando a caminhada para digerir o almoço no Mercado Central de Santiago. Desde Rio Grande ansiava ver de perto o picoroco. Estudara-o no curso de Oceanologia e se tinha ao menos um objetivo concreto naquela viagem, era ver o bicho esquisito ao vivo e, mais ainda, comer o crustáceo, ou o molusco, que o decidissem os biólogos. Carlos não acreditaria. Seria o seu trunfo especial na volta: mostrar a ele que se superava nos nojinhos e nas desilusões do amor.
Marina vivia um momento pós-descoberta da voz. Desde que o vidro da sua redoma tão bem arquitetada pelo pai se quebrara, quase sem que um dos dois percebesse, tivera aquele encontro inusitado com a sua geração fazendo sexo e política, apaixonadamente. Se aquilo era permitido ou não, pouco lhe intrigou e ela logo também se encorajou a clamar por ideais, que soaram mais como desabafos. E foi assim que, aos 18 anos, saltara com os olhos vendados para a vida, para o encanto do amor e a força do sexo, uma liberdade que jamais cogitara.
Agora, com a cabeça no travesseiro do país de Pinochet, o peito ardia era de saudade e melancolia. A procura de uma tábua de salvação, ela evocou o sabor da sopa de mariscos do mercado e a conversa com o trabalhador boliviano ilegal em Viña Del Mar. Simpatizara com o dente de ouro reluzindo no sorriso tímido e tentava visualizar o metal na dentadura perfeita de Carlos. Mas era impossível. Concentrou o pensamento no encontro marcado, justificando-se de que, afinal, o balneário estava no seu roteiro desde o planejamento da viagem.
Juan Carlos a buscou na rodoviária. Foram almoçar num boteco suspeito com vista estonteante do Pacífico. Gastaram as solas dos tênis pela cidade e até o porto de Valparaíso. Entendiam-se com tanta facilidade, uma amizade tão espontânea que parecia antiga, como se tivessem passado juntos a infância ou dividido o companheirismo de uma guerrilha utópica. Entre bobagens e risadas, a tarde evaporara. Foi quando Marina decidiu enclausurar Carlos num cantinho da sua mente e pernoitar ali.
O porteiro do hotelzinho olhou com estranheza o casal: ela, uma moça bonita de cabelos bem cuidados; ele, um rapaz mal-ajambrado. Conduziu-os a um quarto minúsculo que não recebia sol. Livraram os pés dos tênis e das meias e se deitaram à luz amarelada de um velho abajur. Quietos, sem se olhar, ele desabotoou a blusa dela e acariciou a pele macia das suas costas. Afastou o pano delicadamente e levou a boca ao seu seio e o sugou, metódico como um bebê. Ela virou estátua, a meio caminho entre prazer e sofrimento. Ele, percebendo suas lágrimas, adormeceu.
Ao raiar do dia, seguiram para a rodoviária em silêncio. Antes que Marina se afastasse para o embarque, o boliviano segurou no seu pulso e disse: “Si fueses mía, no te dejaria andar sola por ahí”. Marina o fitou com o olhar perdido dos que recém conheceram o amor e seus descaminhos. Sequer conseguiu esboçar um sorriso. Deu um passo na sua direção e encostou a sua face na dele, apertando-lhe suavemente o braço. E logo seguiu pela plataforma, tateando um regresso ao seu pequeno mundo desmoronado. Acomodou-se na poltrona no fundo do ônibus e, com os olhos boiando, pensou: a vida seria linda se, do outro lado da Cordilheira, Carlos ao menos uma vez deixasse Mercedes Sosa e cantasse aquela música que ela sonhava na voz dele: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Mísseis sobre a mesa de jantar
Há um véu que me encobre a mente, se gruda à pele e feito gelo fluido me penetra até as entranhas. Agarro-me a Hipnos, o amigo destes meses de fuga, que mimo com tranqüilizantes, chá de camomila e aspirinas. Ele me busca dentro do pacote de plumas de ganso, que divido com oito patas e dois rabos pretos enroscados na cama larga e sólida. Às vezes, nos leva por 12, 14 horas – meus movimentos tão leves que nem os bigodes felinos acusam.
O silêncio absoluto como o de um existir que se quer apagar, partido apenas por breves minutos, muito cedo, no andar de baixo, com gestos enérgicos de abrir janelas e portas na glacial cozinha. É um instante de conforto sonhado, todas as noites, lá dentro dos pesadelos em profusão. O som da mulher, que, dia a dia, cuida para que eu não mingue como a chama de uma vela no último centímetro.
Desperto a cada novo dia com as mesmas lembranças das fotos e boletins das agências de notícias nas redações. Munição farta para bombardearmos o leitor equilibrista entre os dissabores do dia-a-dia e a tragédia humana: “Bad news? Good new!”, a lei dos publishers. Desço do quarto e, muitas vezes, mal toco a mesa do café da manhã sempre posta: o bolo de fubá bem fofo, o pão caseiro, o queijo da colônia, as maçãs do pomar... Os gatos, sim, se regozijam com a ração.
As cinzas na lareira foram recolhidas, as achas de lenha novamente arranjadas em triângulo, gravetos e jornal retorcido na base – basta riscar o fósforo. Os nós de pinho nas paredes laterais para secar quando o fogo recomeça. O tapete de lã de carneiro irradia aconchego e o calor da calefação. Mas o frio se esgueira pelas frestas na alma.
Imagens se acotovelam, disputando o pódio dos horrores entre apartheid, refugiados no Afeganistão; reféns das Farc e mais, muito mais, sempre mais. Será outro dia curto interminável. O computador aberto, a tela em branco esperando as palavras que preciso encontrar. Mas sempre esse frio de tocaia. Matamos o tempo real onde poderíamos existir – o que um dia mediu o período de uma gestação, do plantio e da colheita, do crescer do pão e do fermentar do vinho, da transmutação da lagarta em borboleta. Agora, fingimos que não é preciso mais esperar o fruto amadurecer, quanto menos a flor desabrochar. Arrancamos todos os brotinhos na primavera. Jogamos as sementes no gelo.
Acaricio a caneca fumegante de café forte e cheiroso, acomodada bem juntinho ao fogo dançando na lareira. Meu olhar se perde através da janela e sua cortina de fog a esmaecer o pinheiro alemão.
Na cozinha já aquecida, em cima do fogão a lenha repousa a sopa de legumes – curtem os sabores da batata, cenoura, cebola, nabo e espinafre da horta que brota viçosa pelas mãos de Inês. Como ter essas mãos? Mãos que não desprezam, não torturam. Mãos que geram vida. Mãos de mãe que nunca fui. Mãos de Deus que teimo em acreditar.
Ligo a televisão e a CNN noticia a prisão do criminoso de guerra servo-bósnio Radovan Karadzic. Respiro em suspenso, os massacres de Srebrenica e de Saravejo frescas como ontem na memória. As lágrimas secaram em algum lugar deste passado e me entrego às labaredas queimando furiosas. Levanto e vou até o computador e escrevo: “Segunda-feira, 21 de julho de 2008. Hoje a Grande Sérvia planejada por facínoras do porte de Karadzic se esfacelou”. E as palavras fogem com a ventania no meu peito em eterno inverno.
Mas nessa noite não tomarei o tranqüilizante. E a lua não aparecerá envergonhada por trás das nuvens. O céu estará limpo e me sentarei no telhado, com o Quixote e o Sancho Pança dos olhos azuis no meu colo, para vê-la sorrir com sua cara de bolacha Maria. Amanhã sairei da toca e comungarei com a liberdade dos tucanos, gaviõezinhos, veados, macaquinhos e esquilos que disputam tão somente a beleza da mata virgem das montanhas. Seguirei pelo caminho de campanários e imagens sacras como uma Santiago de Compostela, até a capelinha de basalto no alto do morro. Preciso rezar a promessa de vencer este frio covarde para ir atrás da sucata dos mísseis usada como vaso de flores sobre a mesa de jantar: história de dor e resistência de quem sobrevive na certeza de que não viemos ao mundo para matar.
O silêncio absoluto como o de um existir que se quer apagar, partido apenas por breves minutos, muito cedo, no andar de baixo, com gestos enérgicos de abrir janelas e portas na glacial cozinha. É um instante de conforto sonhado, todas as noites, lá dentro dos pesadelos em profusão. O som da mulher, que, dia a dia, cuida para que eu não mingue como a chama de uma vela no último centímetro.
Desperto a cada novo dia com as mesmas lembranças das fotos e boletins das agências de notícias nas redações. Munição farta para bombardearmos o leitor equilibrista entre os dissabores do dia-a-dia e a tragédia humana: “Bad news? Good new!”, a lei dos publishers. Desço do quarto e, muitas vezes, mal toco a mesa do café da manhã sempre posta: o bolo de fubá bem fofo, o pão caseiro, o queijo da colônia, as maçãs do pomar... Os gatos, sim, se regozijam com a ração.
As cinzas na lareira foram recolhidas, as achas de lenha novamente arranjadas em triângulo, gravetos e jornal retorcido na base – basta riscar o fósforo. Os nós de pinho nas paredes laterais para secar quando o fogo recomeça. O tapete de lã de carneiro irradia aconchego e o calor da calefação. Mas o frio se esgueira pelas frestas na alma.
Imagens se acotovelam, disputando o pódio dos horrores entre apartheid, refugiados no Afeganistão; reféns das Farc e mais, muito mais, sempre mais. Será outro dia curto interminável. O computador aberto, a tela em branco esperando as palavras que preciso encontrar. Mas sempre esse frio de tocaia. Matamos o tempo real onde poderíamos existir – o que um dia mediu o período de uma gestação, do plantio e da colheita, do crescer do pão e do fermentar do vinho, da transmutação da lagarta em borboleta. Agora, fingimos que não é preciso mais esperar o fruto amadurecer, quanto menos a flor desabrochar. Arrancamos todos os brotinhos na primavera. Jogamos as sementes no gelo.
Acaricio a caneca fumegante de café forte e cheiroso, acomodada bem juntinho ao fogo dançando na lareira. Meu olhar se perde através da janela e sua cortina de fog a esmaecer o pinheiro alemão.
Na cozinha já aquecida, em cima do fogão a lenha repousa a sopa de legumes – curtem os sabores da batata, cenoura, cebola, nabo e espinafre da horta que brota viçosa pelas mãos de Inês. Como ter essas mãos? Mãos que não desprezam, não torturam. Mãos que geram vida. Mãos de mãe que nunca fui. Mãos de Deus que teimo em acreditar.
Ligo a televisão e a CNN noticia a prisão do criminoso de guerra servo-bósnio Radovan Karadzic. Respiro em suspenso, os massacres de Srebrenica e de Saravejo frescas como ontem na memória. As lágrimas secaram em algum lugar deste passado e me entrego às labaredas queimando furiosas. Levanto e vou até o computador e escrevo: “Segunda-feira, 21 de julho de 2008. Hoje a Grande Sérvia planejada por facínoras do porte de Karadzic se esfacelou”. E as palavras fogem com a ventania no meu peito em eterno inverno.
Mas nessa noite não tomarei o tranqüilizante. E a lua não aparecerá envergonhada por trás das nuvens. O céu estará limpo e me sentarei no telhado, com o Quixote e o Sancho Pança dos olhos azuis no meu colo, para vê-la sorrir com sua cara de bolacha Maria. Amanhã sairei da toca e comungarei com a liberdade dos tucanos, gaviõezinhos, veados, macaquinhos e esquilos que disputam tão somente a beleza da mata virgem das montanhas. Seguirei pelo caminho de campanários e imagens sacras como uma Santiago de Compostela, até a capelinha de basalto no alto do morro. Preciso rezar a promessa de vencer este frio covarde para ir atrás da sucata dos mísseis usada como vaso de flores sobre a mesa de jantar: história de dor e resistência de quem sobrevive na certeza de que não viemos ao mundo para matar.
terça-feira, 22 de setembro de 2009
Ideias que matam
POR CLÁUDIO MORENO
Ao receber o Nobel de LiterAtura de 1957, Albert Camus proferiu uma frase que gerou muita polêmica tanto na França quanto na Argélia, que lutava então por sua independência: “Acredito na justiça, mas antes e acima dela eu defenderia minha mãe”. Camus, um notório apoiador do direito argelino à autodeterminação, marcava com estas palavras uma mudança definitiva em sua atitude quanto ao conflito: continuava a condenar a fúria repressiva do exército francês, mas passava a denunciar também a violência indiscriminada dos nacionalistas árabes. O público estranhou a frase, mas os extremistas de ambos os lados a detestaram – e com razão, porque ela os acusava.
Trezentos anos antes de Cristo, na cidade de Corinto, o famoso Timóleon já tinha aprendido, de forma muito mais amarga, a mesmíssima lição. Quando jovem, o futuro estadista era diferente em quase tudo de Timófanes, seu irmão mais velho, mas submetia-se de bom grado a seu comando. Numa batalha contra as forças de Argos, Timófanes teve o cavalo abatido bem no meio das linhas inimigas, e Timóleon, ao ver o irmão desacordado no solo, tratou de protegê-lo com seu próprio corpo, aparando no escudo e na couraça os golpes que lhe eram destinados. Embora ferido, conseguiu resistir o tempo suficiente para que seus soldados viessem socorrê-los.
Vencida a batalha, Timófanes, para a decepção de todos os coríntios, que amavam a democracia, aproveitou o entusiasmo da tropa e proclamou-se ditador. Timóleon ainda tentou demovê-lo daquele sonho doentio, mas foi inútil. Envergonhado, sentindo-se responsável pelo acontecido, resolveu tomar uma atitude drástica: acompanhado de dois amigos, voltou a procurar o irmão e insistiu para que voltasse atrás. Vendo, porém, que era tudo em vão, ele e os companheiros puxaram as espadas e mataram ali mesmo o tirano usurpador. Muitos foram os que elogiaram a grandeza daquele cidadão que considerava os laços com a pátria mais fortes que os laços de sangue; outros, no entanto, ficaram chocados com a frieza do gesto, e o próprio Timóleon, sentindo que tinha cometido um ato ímpio e abominável, mergulhou em profunda melancolia. Quando ficou sabendo, então, que sua mãe, estarrecida, tinha amaldiçoado seu nome para sempre, retirou-se de Corinto e vagou por vinte anos pelos campos desertos, fugindo a qualquer contato com seus semelhantes.
Na solidão de seu remorso, Timóleo enfim compreendeu o seu erro: sonhando com uma sociedade melhor, tinha praticado um ato que o transformava num odioso assassino. Pois era disso que falava Camus: as ideias são muito importantes, e podemos discuti-las, noite após noite, depois do jantar – mas nenhuma delas merece que se mate alguém em seu nome. O que conta, mesmo, são as pessoas próximas a nós, esta pequena parcela da humanidade concreta com que partilhamos nossa vida.
(Coluna publicada no jornal Zero Hora, em 22 de setembro de 2009)
Ao receber o Nobel de LiterAtura de 1957, Albert Camus proferiu uma frase que gerou muita polêmica tanto na França quanto na Argélia, que lutava então por sua independência: “Acredito na justiça, mas antes e acima dela eu defenderia minha mãe”. Camus, um notório apoiador do direito argelino à autodeterminação, marcava com estas palavras uma mudança definitiva em sua atitude quanto ao conflito: continuava a condenar a fúria repressiva do exército francês, mas passava a denunciar também a violência indiscriminada dos nacionalistas árabes. O público estranhou a frase, mas os extremistas de ambos os lados a detestaram – e com razão, porque ela os acusava.
Trezentos anos antes de Cristo, na cidade de Corinto, o famoso Timóleon já tinha aprendido, de forma muito mais amarga, a mesmíssima lição. Quando jovem, o futuro estadista era diferente em quase tudo de Timófanes, seu irmão mais velho, mas submetia-se de bom grado a seu comando. Numa batalha contra as forças de Argos, Timófanes teve o cavalo abatido bem no meio das linhas inimigas, e Timóleon, ao ver o irmão desacordado no solo, tratou de protegê-lo com seu próprio corpo, aparando no escudo e na couraça os golpes que lhe eram destinados. Embora ferido, conseguiu resistir o tempo suficiente para que seus soldados viessem socorrê-los.
Vencida a batalha, Timófanes, para a decepção de todos os coríntios, que amavam a democracia, aproveitou o entusiasmo da tropa e proclamou-se ditador. Timóleon ainda tentou demovê-lo daquele sonho doentio, mas foi inútil. Envergonhado, sentindo-se responsável pelo acontecido, resolveu tomar uma atitude drástica: acompanhado de dois amigos, voltou a procurar o irmão e insistiu para que voltasse atrás. Vendo, porém, que era tudo em vão, ele e os companheiros puxaram as espadas e mataram ali mesmo o tirano usurpador. Muitos foram os que elogiaram a grandeza daquele cidadão que considerava os laços com a pátria mais fortes que os laços de sangue; outros, no entanto, ficaram chocados com a frieza do gesto, e o próprio Timóleon, sentindo que tinha cometido um ato ímpio e abominável, mergulhou em profunda melancolia. Quando ficou sabendo, então, que sua mãe, estarrecida, tinha amaldiçoado seu nome para sempre, retirou-se de Corinto e vagou por vinte anos pelos campos desertos, fugindo a qualquer contato com seus semelhantes.
Na solidão de seu remorso, Timóleo enfim compreendeu o seu erro: sonhando com uma sociedade melhor, tinha praticado um ato que o transformava num odioso assassino. Pois era disso que falava Camus: as ideias são muito importantes, e podemos discuti-las, noite após noite, depois do jantar – mas nenhuma delas merece que se mate alguém em seu nome. O que conta, mesmo, são as pessoas próximas a nós, esta pequena parcela da humanidade concreta com que partilhamos nossa vida.
(Coluna publicada no jornal Zero Hora, em 22 de setembro de 2009)
segunda-feira, 13 de julho de 2009
O curso do rio
Os botões se libertavam das gavinhas agarradas ao velho muro de pedras, se projetando ao encontro do sol gentil da primavera. Eram as flores de maracujá, que não podiam mais esperar por abrir. As grossas pétalas verdes mostraram sua intimidade: coroa roxa em filigranas se oferecendo às abelhas e beija-flores. Ísis observava, dia após dia, a evolução da flor. E sentia a promessa do fruto tal como a do eu novamente no seu íntimo.
Longos meses haviam se passado. Úmidos e gelados, de sombras permanentes. Para Ísis, os dias do outono e do inverno foram mais compridos do que a claridade delimitava. A insônia desafiava o breu da casa que era um casulo de hipóteses na sofreguidão. Distâncias infindáveis Ísis percorreu nos vinte metros do corredor que findava nas janelas, de grades brancas, voltadas para o lago prateado. Atorado no meio por três lances de escada, que ora davam seguimento, ora invertiam sua busca. As torneiras domésticas, transformadas em fontes inesgotáveis de água purificadora para banhos e mãos lavadas à exaustão. O pai – a todos curava com seu estojo metálico de injeções que fervia sobre o fogo – lhe aplicava uma substância roxa para o sistema nervoso central, mas nada podia com os olhos de infinito da filha.
Muitas vidas ela viveu. E a cada uma, seu corpo terminava endurecido na grama orvalhada do quintal, exaurido na consciência da violência e do poder. Ísis tremeu o frio crônico das crianças nas ruas; chorou o sorriso jamais esboçado no rostinho dos órfãos de leprosos; andou atrás do pequeno índio barrigudo de nariz escorrendo; tentou responder aos tambores embaixo da terra batucando a negritude de lamentos seculares; escondeu-se atrás da porta do quarto e, como cachorro raivoso, rosnava em silêncio para os pais e o irmão, que lhe pareciam fantasmas se movendo a esmo pela casa. Quando vagava pelo teto do quarto rosa e branco, a menina se enxergava deitada, imóvel, na cama. Com o passar do tempo, começou a sentir uma saudade brutal de quem quer que fora. Falta daquele corpo ali tão perto e tão distante. E então, de mãos dadas com uma fada azul disfarçada de terapeuta, entrou no labirinto de adivinhação sobre si mesma.
Foi num dia muito claro daquele inverno de trevas que Ísis sentou ao sol e recomeçou a ler. Escolheu a trilogia O Tempo e o Vento. Amava o vento tanto quanto Bibiana Terra Cambará – “As coisas acontecem quando venta”, dizia a velha dama de Erico – e todas as manhãs, página após página, a história daquela gente verdadeira lhe contornava um universo paralelo. Levantava-se do chão onde se acomodara de encontro ao sofá com almofadas e manta e, da janela de seu casulo, contemplava o lago. A cada 24 horas cumpridas pelo carrilhão da sala de jantar, angustiava-se menos com os navios que passavam nas águas encrespadas pelo minuano, em direção ao lugar bonito para onde também gostaria de ir.
A primavera chegou e Ísis agora alternava o último volume do Arquipélago com breves passeios no pátio. Caminhava devagarzinho, absorvendo o brilho do sol no olhar opaco. Acompanhava as borboletas amarelas em seu livre voo desorientado. Estancava diante do muro de pedras e introjetava o desabrochar da flor do maracujá – era a polinização que tomava lugar também no seu coração. Ísis sentia o eu em retorno como um barquinho solitário, que é apenas um ponto dentro do nevoeiro e vai se aproximando lenta, muito lentamente, da margem do lago onde ela o esperava.
Hoje sabemos que cada partícula do nosso corpo carrega em código todo o nosso ser. Temos essa leitura íntegra em um pedaço de unha que escapa ao solo quando a cortamos; num fio de cabelo que se junta ao leito dos rios descartado no ralo da pia depois de nos escovarmos; no sangue do ferimento que se gruda aos espinhos da roseira. Desde o nada existimos, um pedaço ínfimo de nós esteve lá, viu tudo, desde as garras e os pêlos até a evolução, o medo, a miséria e a extinção. E seguirá a ver esse movimento contínuo de Deus que está em tudo e em nós, porque somos imortais. Não há só uma vida depois da outra, mas o imortal na complexidade brutal da vida. Era o que ponderava Ísis no final do verão de sua volta ao mundo dos homens. E tentava se resignar com esse curso ininterrupto da vida, que segue como o rio entre as pedras limadas, a despeito de todas as barbáries.
A menina juntou suas partículas no seio protetor da família, estruturou as memórias e voltou à universidade para recuperar o ano perdido – precisava seguir rumo ao futuro, mesmo que ainda não o conseguisse mais sonhar.
Longos meses haviam se passado. Úmidos e gelados, de sombras permanentes. Para Ísis, os dias do outono e do inverno foram mais compridos do que a claridade delimitava. A insônia desafiava o breu da casa que era um casulo de hipóteses na sofreguidão. Distâncias infindáveis Ísis percorreu nos vinte metros do corredor que findava nas janelas, de grades brancas, voltadas para o lago prateado. Atorado no meio por três lances de escada, que ora davam seguimento, ora invertiam sua busca. As torneiras domésticas, transformadas em fontes inesgotáveis de água purificadora para banhos e mãos lavadas à exaustão. O pai – a todos curava com seu estojo metálico de injeções que fervia sobre o fogo – lhe aplicava uma substância roxa para o sistema nervoso central, mas nada podia com os olhos de infinito da filha.
Muitas vidas ela viveu. E a cada uma, seu corpo terminava endurecido na grama orvalhada do quintal, exaurido na consciência da violência e do poder. Ísis tremeu o frio crônico das crianças nas ruas; chorou o sorriso jamais esboçado no rostinho dos órfãos de leprosos; andou atrás do pequeno índio barrigudo de nariz escorrendo; tentou responder aos tambores embaixo da terra batucando a negritude de lamentos seculares; escondeu-se atrás da porta do quarto e, como cachorro raivoso, rosnava em silêncio para os pais e o irmão, que lhe pareciam fantasmas se movendo a esmo pela casa. Quando vagava pelo teto do quarto rosa e branco, a menina se enxergava deitada, imóvel, na cama. Com o passar do tempo, começou a sentir uma saudade brutal de quem quer que fora. Falta daquele corpo ali tão perto e tão distante. E então, de mãos dadas com uma fada azul disfarçada de terapeuta, entrou no labirinto de adivinhação sobre si mesma.
Foi num dia muito claro daquele inverno de trevas que Ísis sentou ao sol e recomeçou a ler. Escolheu a trilogia O Tempo e o Vento. Amava o vento tanto quanto Bibiana Terra Cambará – “As coisas acontecem quando venta”, dizia a velha dama de Erico – e todas as manhãs, página após página, a história daquela gente verdadeira lhe contornava um universo paralelo. Levantava-se do chão onde se acomodara de encontro ao sofá com almofadas e manta e, da janela de seu casulo, contemplava o lago. A cada 24 horas cumpridas pelo carrilhão da sala de jantar, angustiava-se menos com os navios que passavam nas águas encrespadas pelo minuano, em direção ao lugar bonito para onde também gostaria de ir.
A primavera chegou e Ísis agora alternava o último volume do Arquipélago com breves passeios no pátio. Caminhava devagarzinho, absorvendo o brilho do sol no olhar opaco. Acompanhava as borboletas amarelas em seu livre voo desorientado. Estancava diante do muro de pedras e introjetava o desabrochar da flor do maracujá – era a polinização que tomava lugar também no seu coração. Ísis sentia o eu em retorno como um barquinho solitário, que é apenas um ponto dentro do nevoeiro e vai se aproximando lenta, muito lentamente, da margem do lago onde ela o esperava.
Hoje sabemos que cada partícula do nosso corpo carrega em código todo o nosso ser. Temos essa leitura íntegra em um pedaço de unha que escapa ao solo quando a cortamos; num fio de cabelo que se junta ao leito dos rios descartado no ralo da pia depois de nos escovarmos; no sangue do ferimento que se gruda aos espinhos da roseira. Desde o nada existimos, um pedaço ínfimo de nós esteve lá, viu tudo, desde as garras e os pêlos até a evolução, o medo, a miséria e a extinção. E seguirá a ver esse movimento contínuo de Deus que está em tudo e em nós, porque somos imortais. Não há só uma vida depois da outra, mas o imortal na complexidade brutal da vida. Era o que ponderava Ísis no final do verão de sua volta ao mundo dos homens. E tentava se resignar com esse curso ininterrupto da vida, que segue como o rio entre as pedras limadas, a despeito de todas as barbáries.
A menina juntou suas partículas no seio protetor da família, estruturou as memórias e voltou à universidade para recuperar o ano perdido – precisava seguir rumo ao futuro, mesmo que ainda não o conseguisse mais sonhar.
sábado, 13 de junho de 2009
Perdão, Malaika
Para a menininha na foto Vulture
Malaika não tinha mais forças para sustentar a cabeça protuberante sobre o tórax inchado, com pernas e braços espetados como gravetos numa bola. Os urubus espreitavam a pequenina vergada ao solo nas imediações da sua aldeia em ruínas. Mas Oxalá, amarrado no frágil pescoço, não queria a morte de mais um inocente e ordenou à natureza um fenômeno naquele dezembro de 1993.
Assim, o furacão, que balouçava nas Bahamas, se deslocou repentinamente e avançou a 280km/h pelo Mediterrâneo. Enfraqueceu-se no Canal de Suez e chegou pelo Mar Vermelho na costa leste africana a 160km/h. Malaika era já um quase nada à beira da estrada quando a tempestade rodopiante arremessou abutres, misérias e tiranias pelos ares; e a carregou através dos oceanos para um campo muito verde no sul da América do Sul.
A miúda despertou bebendo com dificuldade o soro do leite da vaca Mimosa. Ao, enfim, acordar-se de todo, encontrou o olhar terno e preocupado da senhora Burmann – pensou que fosse um espírito divino, pois eram olhos azuis como o céu límpido de uma manhã que vislumbrara pela abertura da enkaji. Malaika se recuperou lenta e progressivamente, enquanto Maria a velava na beira da cama, improvisando fábulas como cantigas de ninar. Antes de dormir, ela recebia a visita de Pedro, que também vinha lhe embalar com histórias sobre o seu dia com as pedras formosas e o pomar.
Alimentavam-lhe com um caldo cheiroso de cor abóbora. E miolo de pão caseiro com uma grossa camada de schimier de figo, que devorava. O casal Burmann se recolhia ao leito e orava ainda mais fervorosamente: o anjinho negro caíra do céu como resposta às inumeráveis tentativas de concepção. Pediam a Deus, agora, que levasse para longe as sombras sobre o olhar da sua filha.
Pois este dia chegou, quando a pequena pôde levantar da cama e sair para os Campos de Cima da Serra. Nem todos os fogos de artifício poderiam dar mais brilho aos olhinhos rastreando a volta. Naquele lugar não havia estradas poeirentas como onde a abandonaram, nem cadáveres e destroços, nem mata queimada e fuligem. E as cabras magras do rebanho da sua tribo, ali eram cobertas por tufos fofos de lã. Ela correu atrás das ovelhas gordinhas, mal dando razão ao delírio de sua visão. Trepou nas macieiras carregadas e ensaiou uma melodia de risos inéditos com as frutas que, no balançar frenético dos galhos, caíam ao chão. Arregalou os olhos frente às esculturas de Pedro no enorme galpão que ele dividia com a vaca de manchas pretas. Vibrou em ajudá-lo a tirar o leite, ansiosa para beber o líquido espumoso que fluía nas suas mãozinhas para dentro do balde de alumínio.
O inverno avançou e, no lar dos Burmann, as noites gélidas transcorriam aquecidas por um infinito amor em português, que a menina aprendia ao pé da lareira com o fogo ancestral. Uma manhã, ao espiar pela janela do quarto, Malaika pensou que as nuvens houvessem descido todas do céu. Saiu da casa muda de emoção e troteou no baio, na garupa de Maria, pela pequena propriedade coberta de neve. Noutro dia, o casal a levou ao cânion do Monte Negro e ela tremeu com a vista imensa daquele oceano por onde passara. Ali reencontrou as divindades da natureza no grito do gaviãozinho sobre o vale profundo.
Chegou um domingo para levar Malaika à missa, e Maria escolheu para a filha o vestido de lã que cozera com um calor desconhecido no peito – nenhum dos prêmios com o seu patchwork lhe aquecera de tal forma o coração. Fizera-o em listras largas vermelhas intercaladas com triângulos verdes, laranjas e roxos encaixados, tudo arrematado com pontos visíveis de linha preta de seda. Ficou lindo com o fio de contas branco leitoso sempre justo no fino pescocinho, que não arrebentara na viagem de furacão. Pedro dirigiu o jipe 40 km a oeste por onde há mais de um século pisotearam os tropeiros e pararam na Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus. As torres góticas elevadas ao céu encontraram no íntimo da criança as raízes da árvore vertical cultuada na sua terra distante.
Malaika assistiu toda a missa muito quieta, escutando ecos graves de outrora. No final, rezou junto com o sacerdote: "Pai Nosso que estais no céu (...) perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém". E foi comungar de mãos dadas com Maria: o mal não mais existia no seu coração, a todos perdoara.
Malaika não tinha mais forças para sustentar a cabeça protuberante sobre o tórax inchado, com pernas e braços espetados como gravetos numa bola. Os urubus espreitavam a pequenina vergada ao solo nas imediações da sua aldeia em ruínas. Mas Oxalá, amarrado no frágil pescoço, não queria a morte de mais um inocente e ordenou à natureza um fenômeno naquele dezembro de 1993.
Assim, o furacão, que balouçava nas Bahamas, se deslocou repentinamente e avançou a 280km/h pelo Mediterrâneo. Enfraqueceu-se no Canal de Suez e chegou pelo Mar Vermelho na costa leste africana a 160km/h. Malaika era já um quase nada à beira da estrada quando a tempestade rodopiante arremessou abutres, misérias e tiranias pelos ares; e a carregou através dos oceanos para um campo muito verde no sul da América do Sul.
A miúda despertou bebendo com dificuldade o soro do leite da vaca Mimosa. Ao, enfim, acordar-se de todo, encontrou o olhar terno e preocupado da senhora Burmann – pensou que fosse um espírito divino, pois eram olhos azuis como o céu límpido de uma manhã que vislumbrara pela abertura da enkaji. Malaika se recuperou lenta e progressivamente, enquanto Maria a velava na beira da cama, improvisando fábulas como cantigas de ninar. Antes de dormir, ela recebia a visita de Pedro, que também vinha lhe embalar com histórias sobre o seu dia com as pedras formosas e o pomar.
Alimentavam-lhe com um caldo cheiroso de cor abóbora. E miolo de pão caseiro com uma grossa camada de schimier de figo, que devorava. O casal Burmann se recolhia ao leito e orava ainda mais fervorosamente: o anjinho negro caíra do céu como resposta às inumeráveis tentativas de concepção. Pediam a Deus, agora, que levasse para longe as sombras sobre o olhar da sua filha.
Pois este dia chegou, quando a pequena pôde levantar da cama e sair para os Campos de Cima da Serra. Nem todos os fogos de artifício poderiam dar mais brilho aos olhinhos rastreando a volta. Naquele lugar não havia estradas poeirentas como onde a abandonaram, nem cadáveres e destroços, nem mata queimada e fuligem. E as cabras magras do rebanho da sua tribo, ali eram cobertas por tufos fofos de lã. Ela correu atrás das ovelhas gordinhas, mal dando razão ao delírio de sua visão. Trepou nas macieiras carregadas e ensaiou uma melodia de risos inéditos com as frutas que, no balançar frenético dos galhos, caíam ao chão. Arregalou os olhos frente às esculturas de Pedro no enorme galpão que ele dividia com a vaca de manchas pretas. Vibrou em ajudá-lo a tirar o leite, ansiosa para beber o líquido espumoso que fluía nas suas mãozinhas para dentro do balde de alumínio.
O inverno avançou e, no lar dos Burmann, as noites gélidas transcorriam aquecidas por um infinito amor em português, que a menina aprendia ao pé da lareira com o fogo ancestral. Uma manhã, ao espiar pela janela do quarto, Malaika pensou que as nuvens houvessem descido todas do céu. Saiu da casa muda de emoção e troteou no baio, na garupa de Maria, pela pequena propriedade coberta de neve. Noutro dia, o casal a levou ao cânion do Monte Negro e ela tremeu com a vista imensa daquele oceano por onde passara. Ali reencontrou as divindades da natureza no grito do gaviãozinho sobre o vale profundo.
Chegou um domingo para levar Malaika à missa, e Maria escolheu para a filha o vestido de lã que cozera com um calor desconhecido no peito – nenhum dos prêmios com o seu patchwork lhe aquecera de tal forma o coração. Fizera-o em listras largas vermelhas intercaladas com triângulos verdes, laranjas e roxos encaixados, tudo arrematado com pontos visíveis de linha preta de seda. Ficou lindo com o fio de contas branco leitoso sempre justo no fino pescocinho, que não arrebentara na viagem de furacão. Pedro dirigiu o jipe 40 km a oeste por onde há mais de um século pisotearam os tropeiros e pararam na Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus. As torres góticas elevadas ao céu encontraram no íntimo da criança as raízes da árvore vertical cultuada na sua terra distante.
Malaika assistiu toda a missa muito quieta, escutando ecos graves de outrora. No final, rezou junto com o sacerdote: "Pai Nosso que estais no céu (...) perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém". E foi comungar de mãos dadas com Maria: o mal não mais existia no seu coração, a todos perdoara.
domingo, 10 de maio de 2009
ALMA PIXAIM
Adquiri, nesses infinitos anos assassinados junto a ti, uma tal artrite de emoções, que nem mais lembro se lágrimas existem. Dutos lacrimais oleosos. Nem mesmo a enzima da cebola, transformadora de ácido em fator lacrimogênio, é capaz de bambolear qualquer líquido em minhas faces.
Teu coração empedrou-se num tempo em que só as águas conheciam o universo. Soterraste minha glote no primeiro olhar, para jamais precisares me ouvir. Tu te valeste de minha inocência bigorrilha para me prender no jazigo das certezas imutáveis da tua mente. E minhas lágrimas nunca encontraram os oceanos – esqueci de chorar desde as células.
Pois ouso dizer-te agora: Nunca entendeste que a inocência é o ouro no coração dos homens.
Mas como poderias?
Usaste desde sempre o pedestal do teu conhecimento a prova de qualquer rajada como isca. Submerso no nevoeiro da soberba, subjugaste a todos que te amaram, como cobaias. Desprezaste nossos gestos. Ridicularizaste nossos sentimentos.
A mim dedicaste especial atenção, não foi? Nunca imaginaste que chegaria o dia em que minha alma pixaim não mais se curvaria a tua cabeça dourada.
E neste dia começou o desague de tua consciência a bordo do Alzheimer. O óleo supracitado escorreu pelas minhas faces como fonte inesgotável de lágrimas perdidas. Imaginaste que eu me regozijaria ante tua derrocada, não é mesmo?
Pois preciso dizer-te agora: O ódio só consegue ser momentâneo, quando nasce do sofrimento sem fim.
Teu coração empedrou-se num tempo em que só as águas conheciam o universo. Soterraste minha glote no primeiro olhar, para jamais precisares me ouvir. Tu te valeste de minha inocência bigorrilha para me prender no jazigo das certezas imutáveis da tua mente. E minhas lágrimas nunca encontraram os oceanos – esqueci de chorar desde as células.
Pois ouso dizer-te agora: Nunca entendeste que a inocência é o ouro no coração dos homens.
Mas como poderias?
Usaste desde sempre o pedestal do teu conhecimento a prova de qualquer rajada como isca. Submerso no nevoeiro da soberba, subjugaste a todos que te amaram, como cobaias. Desprezaste nossos gestos. Ridicularizaste nossos sentimentos.
A mim dedicaste especial atenção, não foi? Nunca imaginaste que chegaria o dia em que minha alma pixaim não mais se curvaria a tua cabeça dourada.
E neste dia começou o desague de tua consciência a bordo do Alzheimer. O óleo supracitado escorreu pelas minhas faces como fonte inesgotável de lágrimas perdidas. Imaginaste que eu me regozijaria ante tua derrocada, não é mesmo?
Pois preciso dizer-te agora: O ódio só consegue ser momentâneo, quando nasce do sofrimento sem fim.
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