POR DANUZA LEÃO
Quantas mentiras nos contaram; foram tantas, que a gente bem cedo começa a acreditar e, ainda por cima, a se achar culpada por ser incompetente e sem condições de fazer da vida uma sucessão de vitórias e felicidades.
Uma das mentiras:
É a que nós, mulheres, podemos conciliar perfeitamente as funções de mãe, esposa, companheira e amante, e ainda por cima ter uma carreira profissional brilhante.
É muito simples: não podemos.
Não podemos; quando você se dedica de corpo e alma a seu filho recém-nascido, que na hora certa de mamar dorme, e que à noite, quando devia estar dormindo, chora com fome, não consegue estar bem sexy quando o marido chega, para cumprir um dos papéis considerados obrigatórios na trajetória de uma mulher moderna: a de amante.
Aliás, nem a de companheira; quem vai conseguir trocar uma idéia sobre a poluição da Baía de Guanabara se saiu do trabalho e passou no supermercado rapidinho para comprar uma massa e um molho já pronto para resolver o jantar, e ainda por cima está deprimida porque não teve tempo de fazer uma escova?
Mas as revistas femininas estão aí, querendo convencer as mulheres - e os maridos - de que um peixinho com ervas no forno com uma batatinha cozida al dente, acompanhado por uma salada e um vinhozinho branco é facílimo de fazer - sem esquecer as flores e as velas acesas, claro, e com isso o casamento continuar tendo aquele toque de glamour fun-da-men-tal para que dure por muitos emuitos anos.
- Ah, quanta mentira!
Outra grande, diz respeito à mulher que trabalha; não à que faz de conta que trabalha, mas à que trabalha mesmo.
No começo, ela até tenta se vestir no capricho, usar sapato de salto e estar sempre maquiada; mas cedo se vão as ilusões. Entre em qualquer local de trabalho pelas 4 da tarde e vai ver um bando de mulheres maltratadas, com o cabelo horrendo, a cara lavada, e sem um pingo do glamour - aquele - das executivas da Madison.
Dizem que o trabalho enobrece, o que pode até ser verdade.
Mas ele também envelhece, destrói e enruga a pele, e quando se percebe a guerra já está perdida.
Não adianta: uma mulher glamourosa e pronta a fazer todos os charmes - aqueles que enlouquecem os homens - precisa, fundamentalmente, de duas coisas: tempo e dinheiro.
Tempo para hidratar os cabelos, lembrar de tomar seus 37 radicais livres, tempo para ir à hidroginástica, para ter uma massagista tailandesa e um acupunturista que a relaxe; tempo para fazer musculação, alongamento, comprar uma sandália nova para o verão, fazer as unhas, depilação; e dinheiro para tudo isso e ainda para pagar uma excelente empregada - o que também custa dinheiro.
É muito interessante a imagem da mulher que depois do expediente vai ao toalete - um toalete cuja luz é insuportavelmente branca e fria, retoca a maquiagem, coloca os brincos, põe a meia preta que está na bolsa desde de manhã e vai, alegremente, para uma happy hour..
Aliás, se as empresas trocassem a iluminação de seus elevadores e de seus banheiros por lâmpadas âmbar, os índices de produtividade iriam ao infinito; não há auto-estima feminina que resista quando elas se olham nos espelhos desses recintos.
Felizes são as mulheres que têm cinco minutos - só cinco - para decidir a roupa que vão usar no trabalho; na luta contra o relógio o uniforme termina sendo preto ou bege, para que tudo combine sem que um só minuto seja perdido.
Mas tem as outras, com filhos já crescidos: essas, quando chegam em casa, têm que conversar com as crianças, perguntar como foi o dia na escola, procurar entender por que elas estão agressivas, por que o rendimento escolar está baixo.
E ainda tem as outras que, com ou sem filhos, ainda têm um namorado que apronta, e sem o qual elas acham que não conseguem viver. Segundo um conhecedor da alma humana, só existem três coisas sem as quais não se pode viver: ar, água e pão.
Convenhamos que é difícil ser uma mulher de verdade. Impossível, eu diria.
Parabéns para quem consegue fingir tudo isso.
F I O DE A Z E I T E, F I O DE C O N T A S, F I O DE P A L A V R A S Variedades e dicas de cozinha para enfrentar o sufoco cotidiano.
domingo, 21 de março de 2010
domingo, 14 de março de 2010
Use sal grosso em tudo
Um ingrediente fundamental na cozinha é o sal grosso. Eu uso em tudo, até pra temperar a salada no prato, desde que ganhei um saleirinho maravilhoso da minha cliente Janilce de Almeida. Ele mói o sal na hora, igual aos moedores de pimenta, é tudo de bom. O sal grosso é muito mais saudável do que o sal refinado e dá outro sabor a qualquer assado.
Experimente esse frango, super fácil, e comprove a diferença de sabor. É muito importante não deixar o frango ressecar. Cuide a consistência pra tirar do forno ainda úmido. Compre frango caipira, tem nos supermercados na seção de congelados. Eu compro sempre num mercadinho perto da escola do meu filho, o Perini. Você pode fazer a mesma receita com galeto ou até com um peito de frango com osso, se quiser em menor quantidade. Mas eu acho sempre vantagem já fazer o frango inteiro, é mais econômico e você pode congelar o que sobrar e depois usar num risoto ou numa sopa.
Experimente esse frango, super fácil, e comprove a diferença de sabor. É muito importante não deixar o frango ressecar. Cuide a consistência pra tirar do forno ainda úmido. Compre frango caipira, tem nos supermercados na seção de congelados. Eu compro sempre num mercadinho perto da escola do meu filho, o Perini. Você pode fazer a mesma receita com galeto ou até com um peito de frango com osso, se quiser em menor quantidade. Mas eu acho sempre vantagem já fazer o frango inteiro, é mais econômico e você pode congelar o que sobrar e depois usar num risoto ou numa sopa.
1 frango caipira inteiro
Ramos pequenos de alecrim
Sal grosso
Cebolinhas inteiras cruas, descascadas
Batatinhas cruas com casca
Batatinhas cruas com casca
MODO DE FAZER
Tempere o frango com o sal grosso, esfregando bem todo ele, por cima da pele e por dentro da cavidade do osso do peito.
Explore as dobras entre os membros e acomode ali ramos de alecrim e por baixo da pele em diferentes partes e por dentro do corpo do frango.
Recheie a cavidade do bicho com as cebolinhas inteiras cruas. Leve ao forno recém aquecido com a parte da pele do peito para baixo. Acrescente as batatinhas cruas na forma em torno do frango. Asse por 50 minutos aproximadamente e vire. Termine de assar até ficar bem dourado. Você vai desprezar a pele, mas se não resistir, prove apenas um pedacinho, pois a pele tem muito colesterol. Retire as cebolas de dentro do frango antes de servir e as desmanche com o garfo e tempere com pimenta moída na hora, suco de limão e azeite de oliva extra-virgem.
Acompanhe de salada de folhas verdes e um bom Chardonnay.
sábado, 27 de fevereiro de 2010
Duas fêmeas na montanha
Estendida de bruços sobre a toalha felpuda, Carol sentiu a pressão da pedra nos seios macios e nas coxas doloridas. Absorveu a sensação agradável do chão aquecido no corpo esguio. Balançou com gosto a bunda pra lá e pra cá, pra cá e pra lá, experimentando os ossos da pélvis que lhe protegiam o sexo.
Os raios de sol abrasavam da nuca aos pés. Ajeitou o cabelo longo dentro do chapéu de palha e alternou mais uma vez a face apoiada sobre as mãos. Ora admirava o horizonte cravado de pinheiros, ora se divertia com os tico-ticos se banhando na fonte do jardim. Fechou os olhos e se entregou à carícia do vento que amenizava a inclemência do sol das montanhas. Suspirou de satisfação e buscou na dor nos quadris as emoções da noite anterior, uma dor gostosa, como a que sentia depois de cavalgar o tobiano, saudosa, no primeiro dia das férias na fazenda – a vulva pulsou com a lembrança dos movimentos que forçaram seus músculos.
Reviveu a ducha na madrugada; a felicidade de se admirar nua no espelho do banheiro com o homem de ombros largos colado nas suas costas, lhe acarinhando os mamilos intumescidos; as mãos dele descendo pela sua cintura fina, os dedos compridos como os de um pianista indo brincar com os seus pêlos pubianos; a água no cabelo escorrendo até o início das nádegas, onde ele lambeu as gotas fugidias, e subiu lhe mordiscando pelas ondulações das costas até a orelha direita, que abrigou a língua nervosa; os olhares se invadindo dentro do espelho; o rastro molhado no chão do quarto; ele a deitando novamente na cama e abrindo suas pernas, a penetrando com urgência e a girando por cima do seu corpo; e de como se embalou e se aproximou e se afastou, presa a ele na união sagrada de um homem e uma mulher; até quando gemeram, exauridos na batalha de carícias.
Entregou-se ali no jardim ao prazer da noite de orgasmos há tanto adormecidos. Enlevou-se com a sensação de quase poder revivê-los em contato com o chão quente. Longos minutos, de arrepios múltiplos, até abrir os olhos e avistar, cerca de meio metro a seu lado, o inseto.
Ele media em torno de um centímetro, tão verdinho quanto as folhas em brotação. Peregrinava na direção do seu rosto, vagaroso e absorto como um turista desavisado no calçadão de Copacabana. Veio se aproximando e, de repente, se deteve. Alisou o ínfimo fuço com a patinha dianteira esquerda, repetidas vezes, depois usou a direita e, na seqüência, empreendeu um balé contorcionista com as patinhas traseiras deslizando pelas asas. Então se pôs novamente em movimento, até quase a ponto de subir no cotovelo de Carol. Parou com a vista de algo disforme que se erguera à frente – a cabeça dela no chapéu de abas largas. Os olhinhos pareciam dois pontinhos marcados com Bic escrita fina. As antenas, que vinham oscilantes como os últimos fios de cabelo numa careca, empinaram-se a 90o – ele estava agora totalmente alerta. Ficou assim, imóvel, durinho, a mirar o obstáculo de 169 centímetros no seu trajeto. Carol também permaneceu tesa, muito quieta, com a cabeça firme sem mexer um milímetro, torcendo que o inseto não voasse. Queria desfrutar mais um instante de olhos nos olhos com ele. Ou seria com ela?
Sorriu, divertida com seus pensamentos: gostaria que o inseto fosse do sexo feminino e tivesse tido uma noite tão divina como a sua. Seriam, então, duas fêmeas no auge da sexualidade a gozar o sol poderoso das montanhas.
Os raios de sol abrasavam da nuca aos pés. Ajeitou o cabelo longo dentro do chapéu de palha e alternou mais uma vez a face apoiada sobre as mãos. Ora admirava o horizonte cravado de pinheiros, ora se divertia com os tico-ticos se banhando na fonte do jardim. Fechou os olhos e se entregou à carícia do vento que amenizava a inclemência do sol das montanhas. Suspirou de satisfação e buscou na dor nos quadris as emoções da noite anterior, uma dor gostosa, como a que sentia depois de cavalgar o tobiano, saudosa, no primeiro dia das férias na fazenda – a vulva pulsou com a lembrança dos movimentos que forçaram seus músculos.
Reviveu a ducha na madrugada; a felicidade de se admirar nua no espelho do banheiro com o homem de ombros largos colado nas suas costas, lhe acarinhando os mamilos intumescidos; as mãos dele descendo pela sua cintura fina, os dedos compridos como os de um pianista indo brincar com os seus pêlos pubianos; a água no cabelo escorrendo até o início das nádegas, onde ele lambeu as gotas fugidias, e subiu lhe mordiscando pelas ondulações das costas até a orelha direita, que abrigou a língua nervosa; os olhares se invadindo dentro do espelho; o rastro molhado no chão do quarto; ele a deitando novamente na cama e abrindo suas pernas, a penetrando com urgência e a girando por cima do seu corpo; e de como se embalou e se aproximou e se afastou, presa a ele na união sagrada de um homem e uma mulher; até quando gemeram, exauridos na batalha de carícias.
Entregou-se ali no jardim ao prazer da noite de orgasmos há tanto adormecidos. Enlevou-se com a sensação de quase poder revivê-los em contato com o chão quente. Longos minutos, de arrepios múltiplos, até abrir os olhos e avistar, cerca de meio metro a seu lado, o inseto.
Ele media em torno de um centímetro, tão verdinho quanto as folhas em brotação. Peregrinava na direção do seu rosto, vagaroso e absorto como um turista desavisado no calçadão de Copacabana. Veio se aproximando e, de repente, se deteve. Alisou o ínfimo fuço com a patinha dianteira esquerda, repetidas vezes, depois usou a direita e, na seqüência, empreendeu um balé contorcionista com as patinhas traseiras deslizando pelas asas. Então se pôs novamente em movimento, até quase a ponto de subir no cotovelo de Carol. Parou com a vista de algo disforme que se erguera à frente – a cabeça dela no chapéu de abas largas. Os olhinhos pareciam dois pontinhos marcados com Bic escrita fina. As antenas, que vinham oscilantes como os últimos fios de cabelo numa careca, empinaram-se a 90o – ele estava agora totalmente alerta. Ficou assim, imóvel, durinho, a mirar o obstáculo de 169 centímetros no seu trajeto. Carol também permaneceu tesa, muito quieta, com a cabeça firme sem mexer um milímetro, torcendo que o inseto não voasse. Queria desfrutar mais um instante de olhos nos olhos com ele. Ou seria com ela?
Sorriu, divertida com seus pensamentos: gostaria que o inseto fosse do sexo feminino e tivesse tido uma noite tão divina como a sua. Seriam, então, duas fêmeas no auge da sexualidade a gozar o sol poderoso das montanhas.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Fruto proibido
Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, para muita gente, a banana é a fruta proibida do Paraíso. Fui atrás, claro, curiosa em desvendar a origem dessa história e encontrei informação de que também a uva tem seus defensores – ou seriam acusadores? Os argumentos em torno das duas frutas são convincentes e bem mundanos, digamos assim, e me intrigou a maçã se manter no tradicional posto até hoje. Afinal é a menos pecaminosa das três – e de todas as frutas existentes na face da Terra, justiça seja feita. Logo lembrei das aulas de catequese, dos preparatórios para a Primeira Comunhão e fez-se a luz.
Imagine a situação: professorinha casta dos anos 70, educada na moral da Igreja e dos bons costumes, já então uma jovem mamãe dedicada e esposa fidelíssima, ensinando aos seus inocentes pupilos – todos na faixa etária de oito, nove aninhos, sequer sonhavam com a revolução dos costumes deflagrada no mundo – que o fruto proibido crescia como um cacho de... pênis; ou que só uma fruta com destino no álcool poderia ter tentado o primeiro casal a desobedecer a Deus. Seria simplesmente um escândalo.
Assim, a maçã era a única fruta que podia chegar aos nossos ouvidos puros como um deslize do pobre Adão suscetível às investidas da destrambelhada Eva. Pois ao mesmo tempo em que nos ameaçavam com a intriga da cobra safada a se enroscar nas macieiras, nos ensinavam que foi o beijo de amor do Príncipe Encantado que tirou da boca da Branca de Neve o pedacinho de maçã envenenada pela Rainha invejosa; que a maçã do amor é partilhada por casais apaixonados (o que desafia toda e qualquer lógica do paladar, mas na época nem sabíamos da existência de paladar); que raspando de colherinha, você alimenta com a polpa o seu adorado bebê; que na colheita dos pomares da Bretanha existe a figura da mãe das maçãs, o símbolo da fertilidade e da boa sorte; que An apple a day keeps a doctor away; que as tortas de maçã são uma parte considerável da felicidade doméstica dos norte-americanos e as sobremesas mais apreciadas nos bistrôs (o segundo lar dos franceses); etc, etc, etc.
Mas depois daqueles cabeludos da paz e do amor terem feito tudo o que fizeram, era de se esperar que a maçã ficasse desacreditada nessa dualidade do bem e do mal. Pois nem deu tempo: os hábitos de vida mudaram tão vertiginosamente que ninguém mais sequer pensa no assunto. Entretanto, se algum dia voltarem a falar em fruto proibido, garanto que nem a banana e a uva serão lembradas, pois haverá franco consenso em torno da manga. Essa, sim, chega a ser indecente. Quer experimentar?
Descasque uma manga e sinta a delícia do tato com a sua carne firme, macia e morna, a textura lúbrica, o perfume doce e a cor dourada como o sol. Na primeira dentada você já começa a se lambuzar, os lábios, as bochechas e, daí pra frente, é um morde, chupa e lambe de proporções incontroláveis. No final, você está com as mãos, os pulsos, a boca e todo o rosto completamente molhados daquele suco viscoso. E saciada ao gosto do capeta. Logo, logo vem a sensação de culpa, porque no afã de devorá-la, as fibras se grudaram nos seus 32 dentes, sem exceção. Coisa de paixão avassaladora: o céu e o inferno em minutos.
Portanto, pra pecar nem é preciso desacatar a Deus, basta ir à cozinha. Ou melhor, agora que nenhum de nós é mais criança, coloque em prática o slogan de um verdureiro citado pela escritora inglesa Jane Grigson: “Partilhe a manga, no banho, com seu amado”. E a culpa que vá para o diabo que a carregue, com todo o respeito.
Imagine a situação: professorinha casta dos anos 70, educada na moral da Igreja e dos bons costumes, já então uma jovem mamãe dedicada e esposa fidelíssima, ensinando aos seus inocentes pupilos – todos na faixa etária de oito, nove aninhos, sequer sonhavam com a revolução dos costumes deflagrada no mundo – que o fruto proibido crescia como um cacho de... pênis; ou que só uma fruta com destino no álcool poderia ter tentado o primeiro casal a desobedecer a Deus. Seria simplesmente um escândalo.
Assim, a maçã era a única fruta que podia chegar aos nossos ouvidos puros como um deslize do pobre Adão suscetível às investidas da destrambelhada Eva. Pois ao mesmo tempo em que nos ameaçavam com a intriga da cobra safada a se enroscar nas macieiras, nos ensinavam que foi o beijo de amor do Príncipe Encantado que tirou da boca da Branca de Neve o pedacinho de maçã envenenada pela Rainha invejosa; que a maçã do amor é partilhada por casais apaixonados (o que desafia toda e qualquer lógica do paladar, mas na época nem sabíamos da existência de paladar); que raspando de colherinha, você alimenta com a polpa o seu adorado bebê; que na colheita dos pomares da Bretanha existe a figura da mãe das maçãs, o símbolo da fertilidade e da boa sorte; que An apple a day keeps a doctor away; que as tortas de maçã são uma parte considerável da felicidade doméstica dos norte-americanos e as sobremesas mais apreciadas nos bistrôs (o segundo lar dos franceses); etc, etc, etc.
Mas depois daqueles cabeludos da paz e do amor terem feito tudo o que fizeram, era de se esperar que a maçã ficasse desacreditada nessa dualidade do bem e do mal. Pois nem deu tempo: os hábitos de vida mudaram tão vertiginosamente que ninguém mais sequer pensa no assunto. Entretanto, se algum dia voltarem a falar em fruto proibido, garanto que nem a banana e a uva serão lembradas, pois haverá franco consenso em torno da manga. Essa, sim, chega a ser indecente. Quer experimentar?
Descasque uma manga e sinta a delícia do tato com a sua carne firme, macia e morna, a textura lúbrica, o perfume doce e a cor dourada como o sol. Na primeira dentada você já começa a se lambuzar, os lábios, as bochechas e, daí pra frente, é um morde, chupa e lambe de proporções incontroláveis. No final, você está com as mãos, os pulsos, a boca e todo o rosto completamente molhados daquele suco viscoso. E saciada ao gosto do capeta. Logo, logo vem a sensação de culpa, porque no afã de devorá-la, as fibras se grudaram nos seus 32 dentes, sem exceção. Coisa de paixão avassaladora: o céu e o inferno em minutos.
Portanto, pra pecar nem é preciso desacatar a Deus, basta ir à cozinha. Ou melhor, agora que nenhum de nós é mais criança, coloque em prática o slogan de um verdureiro citado pela escritora inglesa Jane Grigson: “Partilhe a manga, no banho, com seu amado”. E a culpa que vá para o diabo que a carregue, com todo o respeito.
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Descaminhos
Um manto sinistro disfarçado de noite descia sobre as raras pessoas nas ruas. Marina ainda estava a muitas quadras da pensão, um desses belos casarões do século XIX, e o Toque de Recolher alarmou nela apenas uma dor aguda muito particular. Continuou andando, lenta e inocentemente desafiadora sob o escudo invisível da juventude. Bateu à porta de duas folhas com vidros decorados do armazém de esquina e acenou para o velho que, ao levantar o olhar do balcão, contorceu uma expressão nada receptiva. Mas deixou-a entrar e, sem delongas, embrulhou com mãos trêmulas as empanadas, recomendando, grave, que acelerasse o passo direto à pensão.
O dia derramara um sol luxuoso em mais uma sombria primavera chilena e Marina flanara pelos arredores da Plaza de Armas. Visitara a Catedral Metropolitana e o prédio do Correio, aproveitando a caminhada para digerir o almoço no Mercado Central de Santiago. Desde Rio Grande ansiava ver de perto o picoroco. Estudara-o no curso de Oceanologia e se tinha ao menos um objetivo concreto naquela viagem, era ver o bicho esquisito ao vivo e, mais ainda, comer o crustáceo, ou o molusco, que o decidissem os biólogos. Carlos não acreditaria. Seria o seu trunfo especial na volta: mostrar a ele que se superava nos nojinhos e nas desilusões do amor.
Marina vivia um momento pós-descoberta da voz. Desde que o vidro da sua redoma tão bem arquitetada pelo pai se quebrara, quase sem que um dos dois percebesse, tivera aquele encontro inusitado com a sua geração fazendo sexo e política, apaixonadamente. Se aquilo era permitido ou não, pouco lhe intrigou e ela logo também se encorajou a clamar por ideais, que soaram mais como desabafos. E foi assim que, aos 18 anos, saltara com os olhos vendados para a vida, para o encanto do amor e a força do sexo, uma liberdade que jamais cogitara.
Agora, com a cabeça no travesseiro do país de Pinochet, o peito ardia era de saudade e melancolia. A procura de uma tábua de salvação, ela evocou o sabor da sopa de mariscos do mercado e a conversa com o trabalhador boliviano ilegal em Viña Del Mar. Simpatizara com o dente de ouro reluzindo no sorriso tímido e tentava visualizar o metal na dentadura perfeita de Carlos. Mas era impossível. Concentrou o pensamento no encontro marcado, justificando-se de que, afinal, o balneário estava no seu roteiro desde o planejamento da viagem.
Juan Carlos a buscou na rodoviária. Foram almoçar num boteco suspeito com vista estonteante do Pacífico. Gastaram as solas dos tênis pela cidade e até o porto de Valparaíso. Entendiam-se com tanta facilidade, uma amizade tão espontânea que parecia antiga, como se tivessem passado juntos a infância ou dividido o companheirismo de uma guerrilha utópica. Entre bobagens e risadas, a tarde evaporara. Foi quando Marina decidiu enclausurar Carlos num cantinho da sua mente e pernoitar ali.
O porteiro do hotelzinho olhou com estranheza o casal: ela, uma moça bonita de cabelos bem cuidados; ele, um rapaz mal-ajambrado. Conduziu-os a um quarto minúsculo que não recebia sol. Livraram os pés dos tênis e das meias e se deitaram à luz amarelada de um velho abajur. Quietos, sem se olhar, ele desabotoou a blusa dela e acariciou a pele macia das suas costas. Afastou o pano delicadamente e levou a boca ao seu seio e o sugou, metódico como um bebê. Ela virou estátua, a meio caminho entre prazer e sofrimento. Ele, percebendo suas lágrimas, adormeceu.
Ao raiar do dia, seguiram para a rodoviária em silêncio. Antes que Marina se afastasse para o embarque, o boliviano segurou no seu pulso e disse: “Si fueses mía, no te dejaria andar sola por ahí”. Marina o fitou com o olhar perdido dos que recém conheceram o amor e seus descaminhos. Sequer conseguiu esboçar um sorriso. Deu um passo na sua direção e encostou a sua face na dele, apertando-lhe suavemente o braço. E logo seguiu pela plataforma, tateando um regresso ao seu pequeno mundo desmoronado. Acomodou-se na poltrona no fundo do ônibus e, com os olhos boiando, pensou: a vida seria linda se, do outro lado da Cordilheira, Carlos ao menos uma vez deixasse Mercedes Sosa e cantasse aquela música que ela sonhava na voz dele: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.
O dia derramara um sol luxuoso em mais uma sombria primavera chilena e Marina flanara pelos arredores da Plaza de Armas. Visitara a Catedral Metropolitana e o prédio do Correio, aproveitando a caminhada para digerir o almoço no Mercado Central de Santiago. Desde Rio Grande ansiava ver de perto o picoroco. Estudara-o no curso de Oceanologia e se tinha ao menos um objetivo concreto naquela viagem, era ver o bicho esquisito ao vivo e, mais ainda, comer o crustáceo, ou o molusco, que o decidissem os biólogos. Carlos não acreditaria. Seria o seu trunfo especial na volta: mostrar a ele que se superava nos nojinhos e nas desilusões do amor.
Marina vivia um momento pós-descoberta da voz. Desde que o vidro da sua redoma tão bem arquitetada pelo pai se quebrara, quase sem que um dos dois percebesse, tivera aquele encontro inusitado com a sua geração fazendo sexo e política, apaixonadamente. Se aquilo era permitido ou não, pouco lhe intrigou e ela logo também se encorajou a clamar por ideais, que soaram mais como desabafos. E foi assim que, aos 18 anos, saltara com os olhos vendados para a vida, para o encanto do amor e a força do sexo, uma liberdade que jamais cogitara.
Agora, com a cabeça no travesseiro do país de Pinochet, o peito ardia era de saudade e melancolia. A procura de uma tábua de salvação, ela evocou o sabor da sopa de mariscos do mercado e a conversa com o trabalhador boliviano ilegal em Viña Del Mar. Simpatizara com o dente de ouro reluzindo no sorriso tímido e tentava visualizar o metal na dentadura perfeita de Carlos. Mas era impossível. Concentrou o pensamento no encontro marcado, justificando-se de que, afinal, o balneário estava no seu roteiro desde o planejamento da viagem.
Juan Carlos a buscou na rodoviária. Foram almoçar num boteco suspeito com vista estonteante do Pacífico. Gastaram as solas dos tênis pela cidade e até o porto de Valparaíso. Entendiam-se com tanta facilidade, uma amizade tão espontânea que parecia antiga, como se tivessem passado juntos a infância ou dividido o companheirismo de uma guerrilha utópica. Entre bobagens e risadas, a tarde evaporara. Foi quando Marina decidiu enclausurar Carlos num cantinho da sua mente e pernoitar ali.
O porteiro do hotelzinho olhou com estranheza o casal: ela, uma moça bonita de cabelos bem cuidados; ele, um rapaz mal-ajambrado. Conduziu-os a um quarto minúsculo que não recebia sol. Livraram os pés dos tênis e das meias e se deitaram à luz amarelada de um velho abajur. Quietos, sem se olhar, ele desabotoou a blusa dela e acariciou a pele macia das suas costas. Afastou o pano delicadamente e levou a boca ao seu seio e o sugou, metódico como um bebê. Ela virou estátua, a meio caminho entre prazer e sofrimento. Ele, percebendo suas lágrimas, adormeceu.
Ao raiar do dia, seguiram para a rodoviária em silêncio. Antes que Marina se afastasse para o embarque, o boliviano segurou no seu pulso e disse: “Si fueses mía, no te dejaria andar sola por ahí”. Marina o fitou com o olhar perdido dos que recém conheceram o amor e seus descaminhos. Sequer conseguiu esboçar um sorriso. Deu um passo na sua direção e encostou a sua face na dele, apertando-lhe suavemente o braço. E logo seguiu pela plataforma, tateando um regresso ao seu pequeno mundo desmoronado. Acomodou-se na poltrona no fundo do ônibus e, com os olhos boiando, pensou: a vida seria linda se, do outro lado da Cordilheira, Carlos ao menos uma vez deixasse Mercedes Sosa e cantasse aquela música que ela sonhava na voz dele: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.
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