quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Paul McCartney: uma noite para sempre

Tudo já foi dito da passagem e do show de Paul em Porto Alegre e só posso repetir: um gentleman, profissional, talentoso ao extremo, querido, um beatle eterno que mora no coração da nossa geração e, o melhor de tudo, no dos jovens de hoje também. Ele mesmo disse que desde os tempos da banda não via tantos fãs entusiasmados e fiquei orgulhosa da nossa cidade.
Não tenho perfil de fã e nem sou de ir muito a shows, quanto menos em estádios, fico angustiada com a multidão... Mas Paul McCartney no Beira-Rio era imperdível: uma noite que fica para sempre. Fiz muitas fotos.


terça-feira, 9 de novembro de 2010

Um conto em homenagem a Paul McCartney

Despertar

Pedras redondas e lisas como almofadas fofas faziam fronteira entre a areia da praia e o canal da barra do rio Tramandaí. Um quilômetro abaixo do mar, a pequena multidão na ponte, absorta com a promessa das águas, jogava suas linhas de anzóis. Eram assim todas as manhãs e Andréia, quando conseguia escapar dos preparativos da família rumo à praia, cedinho corria para as pedras. Espiava a ponte e sentava de costas, com as pernas alongadas e o corpo levemente inclinado à frente, cruzando as mãos sobre os joelhos. Preferia contemplar o mar, as ondas quebrando uma após a outra em seu repetido movimento criativo. Invadia-se de pensamentos.
Fitou os cabelinhos entre as canelas e os joelhos, como espinhos pretos frouxamente cravados. Lembrou de Laura aboletada nas escadarias de madeira maciça da casa da avó, com quadrados de celofane transparente e o pote de cera quente ao seu lado nos degraus. Esticava a perna e grudava o papel melecado na pele. Encarava Andréia e com um puxão só, preciso, intimidador, arrancava os pêlos escuros sem mover um único músculo da face. A boca se alargava num sorriso provocante e os olhos brilhavam divertidos, como se dominasse artimanhas de mulheres sedutoras. Andréia se encolhia – quase sentia a dor pelos cabelinhos extraviados – incrédula com o gesto que lhe parecia tão fora de propósito.
A mente agora voava faminta como as garças de encontro ao anil do oceano. Considerações sobre toda a sua curta existência oscilavam a bordo de uma frase que não a deixava mais em paz.
* * *
O estopim acontecera há poucos dias. Andréia conversava com as amigas no clube, como de costume nas tardes pacatas dos balneários onde veraneavam famílias gaúchas. Em meio a fofocas e risadinhas, uma cena explodiu a ordem cotidiana das adolescentes: um casal se colara num beijo infindável, ornado de carícias que mal conseguiam acompanhar. Se não eram um guri e uma guria da sua idade, seriam coisa de um ou dois anos, no máximo, mais velhos do que elas.
De certo se tratava de uma atitude desavergonhada, sentenciou Andréia, com base nas lições recebidas em casa – a menina sequer desconfiava que na sua infância o mundo se revolucionara pelas mãos de estudantes, hippies e outros cabeludos da paz e do amor. Indignada, largou o veredicto: "Ele está se aproveitando dela". E prontamente ganhou a concordância das amigas em sonoros "hum hums". Então, com os olhos ainda grudados no casal tentando confirmar a culpa do garoto, ouviu, atrás de si, num tom frio e seco: "Ela TAMBÉM está aproveitando".
O mar avançou furioso sobre as pedras entre a praia e o rio, os quero-queros gritaram ensandecidos, o céu se crispou em chumbo pronto a derramar um temporal absurdo e a ventania varreu toda a areia do pátio do clube, antes que Andréia encarasse a autora daquela sandice.
Espiou por cima do ombro e lá estava: uma guria séria, de cabelos desarrumados na altura dos ombros, um pouco mais alta e magra que as outras, mais estranha que todas já vistas por ali. Virou-se enérgica e por alguns segundos seus olhares se desafiaram – Andréia se arrepiou com a hipótese dela estar falando a verdade. Desviou seus olhos daqueles outros tão seguros que sequer piscavam. Deu de ombros e afastou-se em passos firmes, irritada e aturdida, ainda sem saber que aquela frase ficaria como um sapo enterrado nas suas entranhas por toda a vida.
* * *
O sonho de Andréia e Laura era os rapazes de Liverpool, um dia, descerem de helicóptero no amplo terraço de uma das suas casas para pedi-las em casamento. Encenavam a chegada de Paul e George ao som de “Here comes the sun”, alegres e dançantes, cantando em bom inglês mesmo sem nada compreender das canções.
De repente, lá nas pedras, olhando o mar, aquilo lhe pareceu apenas uma fantasia boba. E agora desconfiava dos castelos, príncipes e princesas bordados à mão na sua roupa de cama; dos riscos de ramalhetes de flores que a mãe não se cansava de escolher para aplicar futuramente no vestido de debutante e no enxoval; das rígidas aulas de piano e ballet; da mesa da sala de jantar sempre impecável; da chaleira de inox que a empregada esfregava com bombril em rodinhas miúdas que brilhavam ao sol...
Andréia redobrou a atenção nas pessoas, nos automóveis, nos poucos programas que lhe era permitido assistir na TV a cores cultuada na sala de estar. E o verão, que festejara a chegada dos anos 70 no Imbé, avançava como se aquele beijo nada significasse. Mas o que haveria além do horizonte onde o Atlântico e o céu trocavam segredos íntimos? Ela não sabia, só sentia que as pedras, o mar, os barcos e as tardes no clube não eram mais as mesmas.
* * *
As conversinhas com as amigas perderam do interesse de Andréia para o ping-pong freneticamente disputado pela gurizada no clube. Havia duas mesas no salão comprido de enormes janelas e quatro ventiladores de teto arejavam a contento o ambiente. O jogo acontecia em duplas formadas livremente entre quem chegasse à procura de diversão.
Na primeira tarde, Andréia entrou sozinha e quieta, pensando em observar apenas. Sentou-se no parapeito baixo de uma das janelas e tentou identificar algum rosto conhecido, talvez o da garota atrevida do fim de semana, ou o casal do beijo, mas não estavam por ali. Logo percebeu um guri de cabelos cor de mel de flor de laranjeira. Estava no outro lado do salão, perto do quadro de pontuação e parecia esperar sua vez de entrar no jogo. Os olhos esverdeados, suaves, encontraram os seus e ele não demorou em se aproximar para convidá-la a formar uma dupla.
Jogaram a tarde inteira, Andréia muito compenetrada na bolinha estridente, e venceram muitas partidas. Trocavam olhares encabulados e sorrisos cúmplices de vitória. E se despediram com alegres acenos.
No outro dia, Andréia dormiu até um pouco mais tarde – acordara duas vezes com sonhos esquisitos que no café já esquecera. Naquela manhã não foi às pedras. Na areia dura da praia, junto com os pais e o irmão caçula, esticou bem o corpo para se bronzear. Pela primeira vez passou água oxigenada nas pernas a fim de descolorir os pêlos ralos, conforme lhe sugerira a mãe no início do verão. Estirada, inerte, se sentiu irrequieta. Talvez pela falta de hábito em se plantar ao sol, mas cheirava também a uma certa ansiedade com as horas preguiçosas a separá-la da tarde no clube. Pensava se Rodrigo compareceria ao ping-pong e se formariam novamente uma dupla.
Encontrou Rodrigo naquela e em muitas outras tardes. A cada jogo ganhavam maior confiança um no outro e passaram a ser uma parelha imbatível. As bolinhas perdidas se convertiam em um momento mágico de excitação e apreensão. Passar a raquete de uma mão à do outro, faziam em gesto lento, roçando as pontas dos dedos. Um carinho que imprimia a tensão dos olhares, que não conseguiam sustentar por mais de alguns segundos. Quase nada conversavam, talvez por medo de quebrar o encanto do toque mais forte que as palavras, mesmo que as conseguissem proferir.
* * *
As férias terminaram e as águas de março dividiram aquele verão do resto da vida de Andréia. O dia-a-dia das aulas no Bom Conselho recomeçou, as amigas retomaram o lugar na sua vida e ela não elucubrava mais tanto sobre a frase daquela menina estranha da praia. Mas sentia, no mais fundo do seu íntimo, um despertar que precisava – e queria muito – explicar.