terça-feira, 13 de outubro de 2009

Descaminhos

Um manto sinistro disfarçado de noite descia sobre as raras pessoas nas ruas. Marina ainda estava a muitas quadras da pensão, um desses belos casarões do século XIX, e o Toque de Recolher alarmou nela apenas uma dor aguda muito particular. Continuou andando, lenta e inocentemente desafiadora sob o escudo invisível da juventude. Bateu à porta de duas folhas com vidros decorados do armazém de esquina e acenou para o velho que, ao levantar o olhar do balcão, contorceu uma expressão nada receptiva. Mas deixou-a entrar e, sem delongas, embrulhou com mãos trêmulas as empanadas, recomendando, grave, que acelerasse o passo direto à pensão.
O dia derramara um sol luxuoso em mais uma sombria primavera chilena e Marina flanara pelos arredores da Plaza de Armas. Visitara a Catedral Metropolitana e o prédio do Correio, aproveitando a caminhada para digerir o almoço no Mercado Central de Santiago. Desde Rio Grande ansiava ver de perto o picoroco. Estudara-o no curso de Oceanologia e se tinha ao menos um objetivo concreto naquela viagem, era ver o bicho esquisito ao vivo e, mais ainda, comer o crustáceo, ou o molusco, que o decidissem os biólogos. Carlos não acreditaria. Seria o seu trunfo especial na volta: mostrar a ele que se superava nos nojinhos e nas desilusões do amor.
Marina vivia um momento pós-descoberta da voz. Desde que o vidro da sua redoma tão bem arquitetada pelo pai se quebrara, quase sem que um dos dois percebesse, tivera aquele encontro inusitado com a sua geração fazendo sexo e política, apaixonadamente. Se aquilo era permitido ou não, pouco lhe intrigou e ela logo também se encorajou a clamar por ideais, que soaram mais como desabafos. E foi assim que, aos 18 anos, saltara com os olhos vendados para a vida, para o encanto do amor e a força do sexo, uma liberdade que jamais cogitara.
Agora, com a cabeça no travesseiro do país de Pinochet, o peito ardia era de saudade e melancolia. A procura de uma tábua de salvação, ela evocou o sabor da sopa de mariscos do mercado e a conversa com o trabalhador boliviano ilegal em Viña Del Mar. Simpatizara com o dente de ouro reluzindo no sorriso tímido e tentava visualizar o metal na dentadura perfeita de Carlos. Mas era impossível. Concentrou o pensamento no encontro marcado, justificando-se de que, afinal, o balneário estava no seu roteiro desde o planejamento da viagem.
Juan Carlos a buscou na rodoviária. Foram almoçar num boteco suspeito com vista estonteante do Pacífico. Gastaram as solas dos tênis pela cidade e até o porto de Valparaíso. Entendiam-se com tanta facilidade, uma amizade tão espontânea que parecia antiga, como se tivessem passado juntos a infância ou dividido o companheirismo de uma guerrilha utópica. Entre bobagens e risadas, a tarde evaporara. Foi quando Marina decidiu enclausurar Carlos num cantinho da sua mente e pernoitar ali.
O porteiro do hotelzinho olhou com estranheza o casal: ela, uma moça bonita de cabelos bem cuidados; ele, um rapaz mal-ajambrado. Conduziu-os a um quarto minúsculo que não recebia sol. Livraram os pés dos tênis e das meias e se deitaram à luz amarelada de um velho abajur. Quietos, sem se olhar, ele desabotoou a blusa dela e acariciou a pele macia das suas costas. Afastou o pano delicadamente e levou a boca ao seu seio e o sugou, metódico como um bebê. Ela virou estátua, a meio caminho entre prazer e sofrimento. Ele, percebendo suas lágrimas, adormeceu.
Ao raiar do dia, seguiram para a rodoviária em silêncio. Antes que Marina se afastasse para o embarque, o boliviano segurou no seu pulso e disse: “Si fueses mía, no te dejaria andar sola por ahí”. Marina o fitou com o olhar perdido dos que recém conheceram o amor e seus descaminhos. Sequer conseguiu esboçar um sorriso. Deu um passo na sua direção e encostou a sua face na dele, apertando-lhe suavemente o braço. E logo seguiu pela plataforma, tateando um regresso ao seu pequeno mundo desmoronado. Acomodou-se na poltrona no fundo do ônibus e, com os olhos boiando, pensou: a vida seria linda se, do outro lado da Cordilheira, Carlos ao menos uma vez deixasse Mercedes Sosa e cantasse aquela música que ela sonhava na voz dele: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”.