segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A valente e polivalente batata

(Crônica publicada no Digestivo Cultural)
Quero fazer um reconhecimento público à batata, o mais universal, democrático e versátil dos alimentos. Minha admiração pela batata começou devido ao seu importante papel no sustento de populações inteiras em épocas de crises e guerras (temos ótimos relatos de Alice B. Toklas, o amor da escritora Gertrude Stein, durante a ocupação nazista da França). Os hidratos de carbono e minerais, que junto com a água formam a sua composição, garantem a produção de energia necessária para manter a dignidade de um homem sobre os dois pés. Já foi dito que a batata é capaz de preservar uma pessoa viva por 167 dias, desde que consuma 1,7 kg a cada dia – ok, é batata pra danar, mas em época de guerra, imagino que se coma o que houver pela frente. Com a batata, o melhor de tudo, é que se presta para inúmeras formas de preparo e fica difícil enjoar. Há um sem número de receitas, das mais simples às muito sofisticadas, freqüentando com a mesma desenvoltura mesa de pobres e de ricos.
Também é a batata que consegue a façanha de agradar crianças, adultos e velhos: quem arrisca dizer que não gosta de batata frita, fumegante, bem sequinha por fora e carnuda por dentro? Esse delírio a humanidade deve a Antoine Parmentier, agrônomo e farmacêutico francês que, por volta de 1780, depois de inúmeras experiências com o enjeitado tubérculo, chegou à fórmula mágica e a batata ganhou notoriedade na França. Até então, Francis Drake, navegador e corsário inglês, já havia divulgado a batata e mesmo com a facilidade do cultivo, era usada apenas como planta ornamental - graças a suas belas e pequenas folhas e flores amarelas ou roxas - ou como comida para porcos... Poucos anos depois da batata frita, no entanto, a notoriedade chegou a tal ponto que um decreto da República Francesa ordenou um censo dos jardins de luxo a fim de serem destinados ao seu cultivo. O resultado foi que a principal avenida do Jardim das Tulherias e os canteiros de flores passaram a ser cultivo de batatas. Por isto, durante muito tempo, as batatas foram também chamadas de “laranjas reais”.
Mas na Alemanha o reconhecimento veio um século mais cedo. Durante e depois da Guerra dos Trinta Anos, entre a Defenestração de Praga de 1618 e o Tratado de Westfália de 1648, a batata assumiu no país o fado sagrado que a história lhe havia destinado e o alemão passou a ser automaticamente associado à batata desde então. Quando meu ex-marido, um autêntico Krob, começou a me chamar de “Batatinha” tive a certeza do seu amor e me senti verdadeiramente promovida, uma vez que na infância meu apelido era “Polentinha” – nada contra a polenta, o milho é um alimento fantástico, mas acho a batata mais nobre. Conheci uma jornalista em São Paulo que quando ficava tensa, nervosa, detonava uma panela de batatas cozidas; e jurava que se acalmava. Eu ainda prefiro chá de camomila, mas já recorri à batata e realmente dá uma sensação de conforto numa TPM, por exemplo...
Uma batata crua é 70 a 80% água e 10 a 20% amido, com o restante constituído de açúcares, fibras, minerais (cálcio, potássio, sódio, magnésio, cloro e enxofre), vitaminas B e C e proteínas de alta qualidade. Praticamente não contém gordura e fornece tantas calorias quanto uma maçã ou banana. Tem a grande vantagem de ser muito barata, comum, de fácil cultivo na maioria dos países e se encontra em mais de uma centena de variedades, apesar de se dividirem em apenas dois grandes grupos: as farinhentas e as cerosas, adjetivos que se referem à sua textura depois de cozidas. As farinhentas são densas, têm maior teor de amido e menor de água, ficam fofas e quase granulentas ao serem amassadas, ideais para nhoque e frituras. As cerosas têm menor teor de amido e maior de água, resultando cremosas e lisas, boas para purês, tortas, massas e cozidos, freqüentemente utilizadas em receitas francesas.
Espero que esse notável alimento, que começou a ser cultivado pelos incas há um milênio, ganhe maior reconhecimento dos grandes chefs e escritores gastronômicos – brilha pouco nos cardápios estrelados e renderia um livro inteiro só sobre ela. Também não me conformo de a usarem como xingamento: “Ora, vá plantar batatas!”. Como disse nosso outro colunista, Paulo Polzonoff Júnior: “Nasci longe do campo (não sei tirar leite de uma vaca nem montar a cavalo), estudei minha vida inteira para descobrir, hoje, agora há pouco, que mais valia ter continuado a ser um camponês na Rússia do que um pretenso qualquer-coisa aqui, sentado na frente desta máquina maldita”. Na Rússia e na Polônia se produz quase a metade dos mais de 350 milhões de metros cúbicos de batata cultivados no mundo, o que alimenta um bom pedaço da humanidade. As hortas em Bilignin, na França, foram alegria de Alice B. Toklas durante e depois da Segunda Guerra Mundial, trabalhava nelas nos verões e planejava e sonhava com elas no inverno. “Nada é tão gratificante e emocionante como colher as hortaliças que se plantou”, dizia Alice. Eu desejaria que todo o cidadão tivesse um pedaço de terra para ir plantar batatas e ser minimamente feliz neste globo maluco.
PARA SABOREAR
Um prato que eu servia no Bistrô Alecrim, simples e maravilhoso: Galette Lyonnaise (Bolo de Batata a Lionesa). Patrícia Wells, uma das grandes escritoras de culinária da França, comenta que os bistrôs de Paris são o paraíso dos apreciadores de batatas e esta receita está no seu livro Cozinha de bistrô. É uma variante da típica mistura de batata e cebola, que costuma acompanhar carnes assadas e bifes, e é muito simples e rápida de preparar.
Bolo de Batata a Lionesa
Rendimento: 6 a 8 porções
Ingredientes
1 kg de batatas grandes
2 cebolas médias
6 colheres (de sopa) de manteiga sem sal
Noz-moscada ralada na hora
Sal e pimenta-do-reino moída na hora
Modo de fazer
Descasque as batatas. Cozinhe-as em água ou no vapor, até que estejam macias e fáceis de amassar. Escorra. Deixe esfriar uns poucos minutos. Amasse com um garfo, deixando pedaços irregulares.
Preaqueça o forno.
Corte as cebolas ao meio, no sentido do comprimento; corte cada metade em rodelas finas, em forma de meia-lua.
Numa frigideira grande, em fogo médio, derreta 2 colheres (de sopa) de manteiga. Junte as cebolas e salte-as até que fiquem macias e douradas (cerca de 10 minutos).
Junte mais 2 colheres (de sopa) de manteiga e deixe derreter. Acrescente as batatas, tempere generosamente com noz-moscada, sal e pimenta. Cozinhe por cerca de mais 2 ou 3 minutos, mexendo de vez em quando.
Arrume a mistura num prato refratário. Com as costas de uma colher, alise a superfície; espalhe as 2 colheres de manteiga restantes, em pedacinhos. Leve ao forno até que fique dourado. Sirva imediatamente.
Curiosidade: Convolvulus batatas (nome científico); em espanhol: patata; em francês: pomme de terre; em italiano: patata; em inglês: potato; em alemão: kartoffel.