segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Mísseis sobre a mesa de jantar

Há um véu que me encobre a mente, se gruda à pele e feito gelo fluido me penetra até as entranhas. Agarro-me a Hipnos, o amigo destes meses de fuga, que mimo com tranqüilizantes, chá de camomila e aspirinas. Ele me busca dentro do pacote de plumas de ganso, que divido com oito patas e dois rabos pretos enroscados na cama larga e sólida. Às vezes, nos leva por 12, 14 horas – meus movimentos tão leves que nem os bigodes felinos acusam.
O silêncio absoluto como o de um existir que se quer apagar, partido apenas por breves minutos, muito cedo, no andar de baixo, com gestos enérgicos de abrir janelas e portas na glacial cozinha. É um instante de conforto sonhado, todas as noites, lá dentro dos pesadelos em profusão. O som da mulher, que, dia a dia, cuida para que eu não mingue como a chama de uma vela no último centímetro.
Desperto a cada novo dia com as mesmas lembranças das fotos e boletins das agências de notícias nas redações. Munição farta para bombardearmos o leitor equilibrista entre os dissabores do dia-a-dia e a tragédia humana: “Bad news? Good new!”, a lei dos publishers. Desço do quarto e, muitas vezes, mal toco a mesa do café da manhã sempre posta: o bolo de fubá bem fofo, o pão caseiro, o queijo da colônia, as maçãs do pomar... Os gatos, sim, se regozijam com a ração.
As cinzas na lareira foram recolhidas, as achas de lenha novamente arranjadas em triângulo, gravetos e jornal retorcido na base – basta riscar o fósforo. Os nós de pinho nas paredes laterais para secar quando o fogo recomeça. O tapete de lã de carneiro irradia aconchego e o calor da calefação. Mas o frio se esgueira pelas frestas na alma.
Imagens se acotovelam, disputando o pódio dos horrores entre apartheid, refugiados no Afeganistão; reféns das Farc e mais, muito mais, sempre mais. Será outro dia curto interminável. O computador aberto, a tela em branco esperando as palavras que preciso encontrar. Mas sempre esse frio de tocaia. Matamos o tempo real onde poderíamos existir – o que um dia mediu o período de uma gestação, do plantio e da colheita, do crescer do pão e do fermentar do vinho, da transmutação da lagarta em borboleta. Agora, fingimos que não é preciso mais esperar o fruto amadurecer, quanto menos a flor desabrochar. Arrancamos todos os brotinhos na primavera. Jogamos as sementes no gelo.
Acaricio a caneca fumegante de café forte e cheiroso, acomodada bem juntinho ao fogo dançando na lareira. Meu olhar se perde através da janela e sua cortina de fog a esmaecer o pinheiro alemão.
Na cozinha já aquecida, em cima do fogão a lenha repousa a sopa de legumes – curtem os sabores da batata, cenoura, cebola, nabo e espinafre da horta que brota viçosa pelas mãos de Inês. Como ter essas mãos? Mãos que não desprezam, não torturam. Mãos que geram vida. Mãos de mãe que nunca fui. Mãos de Deus que teimo em acreditar.
Ligo a televisão e a CNN noticia a prisão do criminoso de guerra servo-bósnio Radovan Karadzic. Respiro em suspenso, os massacres de Srebrenica e de Saravejo frescas como ontem na memória. As lágrimas secaram em algum lugar deste passado e me entrego às labaredas queimando furiosas. Levanto e vou até o computador e escrevo: “Segunda-feira, 21 de julho de 2008. Hoje a Grande Sérvia planejada por facínoras do porte de Karadzic se esfacelou”. E as palavras fogem com a ventania no meu peito em eterno inverno.
Mas nessa noite não tomarei o tranqüilizante. E a lua não aparecerá envergonhada por trás das nuvens. O céu estará limpo e me sentarei no telhado, com o Quixote e o Sancho Pança dos olhos azuis no meu colo, para vê-la sorrir com sua cara de bolacha Maria. Amanhã sairei da toca e comungarei com a liberdade dos tucanos, gaviõezinhos, veados, macaquinhos e esquilos que disputam tão somente a beleza da mata virgem das montanhas. Seguirei pelo caminho de campanários e imagens sacras como uma Santiago de Compostela, até a capelinha de basalto no alto do morro. Preciso rezar a promessa de vencer este frio covarde para ir atrás da sucata dos mísseis usada como vaso de flores sobre a mesa de jantar: história de dor e resistência de quem sobrevive na certeza de que não viemos ao mundo para matar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Ideias que matam

POR CLÁUDIO MORENO

Ao receber o Nobel de LiterAtura de 1957, Albert Camus proferiu uma frase que gerou muita polêmica tanto na França quanto na Argélia, que lutava então por sua independência: “Acredito na justiça, mas antes e acima dela eu defenderia minha mãe”. Camus, um notório apoiador do direito argelino à autodeterminação, marcava com estas palavras uma mudança definitiva em sua atitude quanto ao conflito: continuava a condenar a fúria repressiva do exército francês, mas passava a denunciar também a violência indiscriminada dos nacionalistas árabes. O público estranhou a frase, mas os extremistas de ambos os lados a detestaram – e com razão, porque ela os acusava.
Trezentos anos antes de Cristo, na cidade de Corinto, o famoso Timóleon já tinha aprendido, de forma muito mais amarga, a mesmíssima lição. Quando jovem, o futuro estadista era diferente em quase tudo de Timófanes, seu irmão mais velho, mas submetia-se de bom grado a seu comando. Numa batalha contra as forças de Argos, Timófanes teve o cavalo abatido bem no meio das linhas inimigas, e Timóleon, ao ver o irmão desacordado no solo, tratou de protegê-lo com seu próprio corpo, aparando no escudo e na couraça os golpes que lhe eram destinados. Embora ferido, conseguiu resistir o tempo suficiente para que seus soldados viessem socorrê-los.
Vencida a batalha, Timófanes, para a decepção de todos os coríntios, que amavam a democracia, aproveitou o entusiasmo da tropa e proclamou-se ditador. Timóleon ainda tentou demovê-lo daquele sonho doentio, mas foi inútil. Envergonhado, sentindo-se responsável pelo acontecido, resolveu tomar uma atitude drástica: acompanhado de dois amigos, voltou a procurar o irmão e insistiu para que voltasse atrás. Vendo, porém, que era tudo em vão, ele e os companheiros puxaram as espadas e mataram ali mesmo o tirano usurpador. Muitos foram os que elogiaram a grandeza daquele cidadão que considerava os laços com a pátria mais fortes que os laços de sangue; outros, no entanto, ficaram chocados com a frieza do gesto, e o próprio Timóleon, sentindo que tinha cometido um ato ímpio e abominável, mergulhou em profunda melancolia. Quando ficou sabendo, então, que sua mãe, estarrecida, tinha amaldiçoado seu nome para sempre, retirou-se de Corinto e vagou por vinte anos pelos campos desertos, fugindo a qualquer contato com seus semelhantes.
Na solidão de seu remorso, Timóleo enfim compreendeu o seu erro: sonhando com uma sociedade melhor, tinha praticado um ato que o transformava num odioso assassino. Pois era disso que falava Camus: as ideias são muito importantes, e podemos discuti-las, noite após noite, depois do jantar – mas nenhuma delas merece que se mate alguém em seu nome. O que conta, mesmo, são as pessoas próximas a nós, esta pequena parcela da humanidade concreta com que partilhamos nossa vida.
(Coluna publicada no jornal Zero Hora, em 22 de setembro de 2009)