segunda-feira, 13 de julho de 2009

O curso do rio

Os botões se libertavam das gavinhas agarradas ao velho muro de pedras, se projetando ao encontro do sol gentil da primavera. Eram as flores de maracujá, que não podiam mais esperar por abrir. As grossas pétalas verdes mostraram sua intimidade: coroa roxa em filigranas se oferecendo às abelhas e beija-flores. Ísis observava, dia após dia, a evolução da flor. E sentia a promessa do fruto tal como a do eu novamente no seu íntimo.
Longos meses haviam se passado. Úmidos e gelados, de sombras permanentes. Para Ísis, os dias do outono e do inverno foram mais compridos do que a claridade delimitava. A insônia desafiava o breu da casa que era um casulo de hipóteses na sofreguidão. Distâncias infindáveis Ísis percorreu nos vinte metros do corredor que findava nas janelas, de grades brancas, voltadas para o lago prateado. Atorado no meio por três lances de escada, que ora davam seguimento, ora invertiam sua busca. As torneiras domésticas, transformadas em fontes inesgotáveis de água purificadora para banhos e mãos lavadas à exaustão. O pai – a todos curava com seu estojo metálico de injeções que fervia sobre o fogo – lhe aplicava uma substância roxa para o sistema nervoso central, mas nada podia com os olhos de infinito da filha.
Muitas vidas ela viveu. E a cada uma, seu corpo terminava endurecido na grama orvalhada do quintal, exaurido na consciência da violência e do poder. Ísis tremeu o frio crônico das crianças nas ruas; chorou o sorriso jamais esboçado no rostinho dos órfãos de leprosos; andou atrás do pequeno índio barrigudo de nariz escorrendo; tentou responder aos tambores embaixo da terra batucando a negritude de lamentos seculares; escondeu-se atrás da porta do quarto e, como cachorro raivoso, rosnava em silêncio para os pais e o irmão, que lhe pareciam fantasmas se movendo a esmo pela casa. Quando vagava pelo teto do quarto rosa e branco, a menina se enxergava deitada, imóvel, na cama. Com o passar do tempo, começou a sentir uma saudade brutal de quem quer que fora. Falta daquele corpo ali tão perto e tão distante. E então, de mãos dadas com uma fada azul disfarçada de terapeuta, entrou no labirinto de adivinhação sobre si mesma.
Foi num dia muito claro daquele inverno de trevas que Ísis sentou ao sol e recomeçou a ler. Escolheu a trilogia O Tempo e o Vento. Amava o vento tanto quanto Bibiana Terra Cambará – “As coisas acontecem quando venta”, dizia a velha dama de Erico – e todas as manhãs, página após página, a história daquela gente verdadeira lhe contornava um universo paralelo. Levantava-se do chão onde se acomodara de encontro ao sofá com almofadas e manta e, da janela de seu casulo, contemplava o lago. A cada 24 horas cumpridas pelo carrilhão da sala de jantar, angustiava-se menos com os navios que passavam nas águas encrespadas pelo minuano, em direção ao lugar bonito para onde também gostaria de ir.
A primavera chegou e Ísis agora alternava o último volume do Arquipélago com breves passeios no pátio. Caminhava devagarzinho, absorvendo o brilho do sol no olhar opaco. Acompanhava as borboletas amarelas em seu livre voo desorientado. Estancava diante do muro de pedras e introjetava o desabrochar da flor do maracujá – era a polinização que tomava lugar também no seu coração. Ísis sentia o eu em retorno como um barquinho solitário, que é apenas um ponto dentro do nevoeiro e vai se aproximando lenta, muito lentamente, da margem do lago onde ela o esperava.
Hoje sabemos que cada partícula do nosso corpo carrega em código todo o nosso ser. Temos essa leitura íntegra em um pedaço de unha que escapa ao solo quando a cortamos; num fio de cabelo que se junta ao leito dos rios descartado no ralo da pia depois de nos escovarmos; no sangue do ferimento que se gruda aos espinhos da roseira. Desde o nada existimos, um pedaço ínfimo de nós esteve lá, viu tudo, desde as garras e os pêlos até a evolução, o medo, a miséria e a extinção. E seguirá a ver esse movimento contínuo de Deus que está em tudo e em nós, porque somos imortais. Não há só uma vida depois da outra, mas o imortal na complexidade brutal da vida. Era o que ponderava Ísis no final do verão de sua volta ao mundo dos homens. E tentava se resignar com esse curso ininterrupto da vida, que segue como o rio entre as pedras limadas, a despeito de todas as barbáries.
A menina juntou suas partículas no seio protetor da família, estruturou as memórias e voltou à universidade para recuperar o ano perdido – precisava seguir rumo ao futuro, mesmo que ainda não o conseguisse mais sonhar.