sábado, 13 de junho de 2009

Perdão, Malaika

Para a menininha na foto Vulture

Malaika não tinha mais forças para sustentar a cabeça protuberante sobre o tórax inchado, com pernas e braços espetados como gravetos numa bola. Os urubus espreitavam a pequenina vergada ao solo nas imediações da sua aldeia em ruínas. Mas Oxalá, amarrado no frágil pescoço, não queria a morte de mais um inocente e ordenou à natureza um fenômeno naquele dezembro de 1993.
Assim, o furacão, que balouçava nas Bahamas, se deslocou repentinamente e avançou a 280km/h pelo Mediterrâneo. Enfraqueceu-se no Canal de Suez e chegou pelo Mar Vermelho na costa leste africana a 160km/h. Malaika era já um quase nada à beira da estrada quando a tempestade rodopiante arremessou abutres, misérias e tiranias pelos ares; e a carregou através dos oceanos para um campo muito verde no sul da América do Sul.
A miúda despertou bebendo com dificuldade o soro do leite da vaca Mimosa. Ao, enfim, acordar-se de todo, encontrou o olhar terno e preocupado da senhora Burmann – pensou que fosse um espírito divino, pois eram olhos azuis como o céu límpido de uma manhã que vislumbrara pela abertura da enkaji. Malaika se recuperou lenta e progressivamente, enquanto Maria a velava na beira da cama, improvisando fábulas como cantigas de ninar. Antes de dormir, ela recebia a visita de Pedro, que também vinha lhe embalar com histórias sobre o seu dia com as pedras formosas e o pomar.
Alimentavam-lhe com um caldo cheiroso de cor abóbora. E miolo de pão caseiro com uma grossa camada de schimier de figo, que devorava. O casal Burmann se recolhia ao leito e orava ainda mais fervorosamente: o anjinho negro caíra do céu como resposta às inumeráveis tentativas de concepção. Pediam a Deus, agora, que levasse para longe as sombras sobre o olhar da sua filha.
Pois este dia chegou, quando a pequena pôde levantar da cama e sair para os Campos de Cima da Serra. Nem todos os fogos de artifício poderiam dar mais brilho aos olhinhos rastreando a volta. Naquele lugar não havia estradas poeirentas como onde a abandonaram, nem cadáveres e destroços, nem mata queimada e fuligem. E as cabras magras do rebanho da sua tribo, ali eram cobertas por tufos fofos de lã. Ela correu atrás das ovelhas gordinhas, mal dando razão ao delírio de sua visão. Trepou nas macieiras carregadas e ensaiou uma melodia de risos inéditos com as frutas que, no balançar frenético dos galhos, caíam ao chão. Arregalou os olhos frente às esculturas de Pedro no enorme galpão que ele dividia com a vaca de manchas pretas. Vibrou em ajudá-lo a tirar o leite, ansiosa para beber o líquido espumoso que fluía nas suas mãozinhas para dentro do balde de alumínio.
O inverno avançou e, no lar dos Burmann, as noites gélidas transcorriam aquecidas por um infinito amor em português, que a menina aprendia ao pé da lareira com o fogo ancestral. Uma manhã, ao espiar pela janela do quarto, Malaika pensou que as nuvens houvessem descido todas do céu. Saiu da casa muda de emoção e troteou no baio, na garupa de Maria, pela pequena propriedade coberta de neve. Noutro dia, o casal a levou ao cânion do Monte Negro e ela tremeu com a vista imensa daquele oceano por onde passara. Ali reencontrou as divindades da natureza no grito do gaviãozinho sobre o vale profundo.
Chegou um domingo para levar Malaika à missa, e Maria escolheu para a filha o vestido de lã que cozera com um calor desconhecido no peito – nenhum dos prêmios com o seu patchwork lhe aquecera de tal forma o coração. Fizera-o em listras largas vermelhas intercaladas com triângulos verdes, laranjas e roxos encaixados, tudo arrematado com pontos visíveis de linha preta de seda. Ficou lindo com o fio de contas branco leitoso sempre justo no fino pescocinho, que não arrebentara na viagem de furacão. Pedro dirigiu o jipe 40 km a oeste por onde há mais de um século pisotearam os tropeiros e pararam na Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus. As torres góticas elevadas ao céu encontraram no íntimo da criança as raízes da árvore vertical cultuada na sua terra distante.
Malaika assistiu toda a missa muito quieta, escutando ecos graves de outrora. No final, rezou junto com o sacerdote: "Pai Nosso que estais no céu (...) perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, não nos deixei cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém". E foi comungar de mãos dadas com Maria: o mal não mais existia no seu coração, a todos perdoara.