sexta-feira, 10 de abril de 2009

No útero do pampa

Sequer um mirrado galho das árvores ondulava no horizonte. O ar pesado turvava a vista e a cabeça da gente parecia dentro de uma panela de pressão. Sentei à beira do açude e estiquei as pernas na água. Acariciei a vegetação áspera, escorreguei a mão até a superfície lisa como um espelho e, sem mais nem por que, me angustiei com aquela água misteriosa, como se fosse um líquido amniótico a envolver meus joelhos ossudos. A vida se movia apenas ali no fundo, entre as minhas pernas no ventre do pampa. Girinos e lambaris assustados agora com o movimento dos meus pés. Bagres e traíras comendo e fazendo xixi e coco debaixo dos calcanhares. E o muçum estranho, submerso macio como Tarcísio um dia no meu útero.
Na outra margem do açude, os quatro meninos quebraram a prostração do campo com a brincadeira de pulos do barranquinho, um perfeito trampolim avançado na água da cor de burro quando foge. Pegaram impulso, pularam pra cima e caíram com estardalhaço. Meu magrelo Tarcísio e sua alegria contagiante. Colírio de meus olhos sempre esbugalhados.
Era um filhote destemido esse meu. Tão logo se sustentara nos gambitos, já não se contentava em andar, queria correr. Para meu desespero, repentinamente se abalara pelo quintal irregular de nossa casa e pela rampa da garagem, bamboleando a um átimo de se esborrachar no chão. Atirar-se na água do açude era fácil demais e empregava furor à cena, que ganharia contornos cômicos pela sua desarmonia de braços e pernas, não fosse o risco de uma distensão muscular.
Os primos Nelson, Alceu e Valquíria se esmeravam em lhe proferir ameaças sobre as profundezas obscuras e lamacentas. Não ligava, sequer ouvia aquelas crianças mais velhas, desdenhava com seu jeitinho de dar de ombros. O açude, que os primos queriam pra ele nas proporções do lago Ness com seu monstro, era o amigo que se oferecia novamente inteiro por mais um verão.
Entre a usual admiração e apreensão com meu desengonçado pimpolho, tomei ânimo para escorregar pela relva para dentro do líquido que me engolfou inteira. Senti o barro engolindo a ponta dos meus pés e me contraí toda, buscando rápido o fundo para fugir daquela lama que me perturbava desde menina. Bati pernas e braços insistentemente para manter a cabeça fora d’água. Experimentei deitar de barriga pra cima e, por alguns instantes, quase senti prazer em boiar no ventre inóspito.
Tarcísio, ininterrupta energia, pulava e nadava cachorrinho até a margem para subir novamente e pular, e nadar e subir no barranquinho e gargalhar... até perder o fôlego. Esticava-se, ofegante, na borda do açude, e logo saltava sobre os pés, pronto a recomeçar a brincadeira.
Meu guri recém começara a contar a segunda mãozinha com seus aninhos e até o paladar já espelhava sua essência. Lambia os delicados lábios com os pratos condimentados que a avó preparava do seu caderninho de páginas quadriculadas, todo amarelado e manchado com as receitas húngaras. Adorava nozes, castanhas, pistache e frutas frescas, muitas frutas, que devorava a dentadas. Mesmo as verduras não rejeitava, e também variados peixes e frutos do mar. Qual não foi meu espanto, quando engolira sem piscar um mexilhão num restaurante do Rio de Janeiro. Ou a barra de chocolate amargo com laranja e amêndoas da Lindt, que o pai trouxera de uma viagem de negócios à Alemanha.
Nestas férias, se concentrara no açude e vibrava em comer tudo o que saía daquela água embarrada. A predileção era pelos lambaris fritinhos. Mas também gostava das traíras, apesar da impaciência com o avô a tirar as espinhas antes de lhe entregar o prato com a carne suave. O que pra mim, no dia anterior, fora motivo de pânico – pescar um muçum que joguei longe com o anzol e quase a família perde o petisco do jantar – pra ele fora uma festa. Na volta à sede da fazenda, quis acelerar o trote do petiço além das investidas que eu vivia a reprimir, apressado em chegarmos logo com o peixe – no meu conceito, nada mais do que uma cobra gorducha e nojenta.
Escorregou do cavalo sem a minha permissão e se jogou sobre a cesta com o muçum, correndo para dentro da casa já aos berros.
– Matilde! Matilde! Olha o cobrão que a minha mãe pegou!
– É um muçum, Tarcísio. Coisa muito da boa. Dá cá que eu frito pra janta.
Grudou na pia, acotovelando-se com a roliça cozinheira e seu sorriso largo a tirar o couro do bicho. Não satisfeito na espreita dos movimentos, quis ajudar quando Matilde o fatiou como a um rocambole. Foi preciso uma saraivada de encontrões dos fartos quadris rente ao seu dorso esquálido para afastar as mãozinhas ansiosas. E quando, enfim, as postas redondinhas da carne se contorceram na frigideira, gritou, gritou alto, estridente, se sacudindo todo.
– Cuidado que ele pula em ti, guri – ameaçou Matilde, entre caretas, chicoteando a escumadeira no ar.
Deu dois passos para trás e esbravejou:
– Vem, vem! Atiro uma panela na cara dele!
O grande prato alouçado era um tanto desproporcional para a envergadura dos seus bracinhos – mas não houve jeito, foi tremendo com ele para a mesa, sozinho, ladeado por nosso cortejo à espreita do desastre. Pois venceu e comemorou, fazendo questão de servir ao pai, aos avós, aos tios e se indignou com a cara de asco dos primos... e a minha. Não sossegou enquanto não aceitei do seu garfo um pedacinho bem branquinho.
Ficou controlando pra ver se eu engolia e disse:
– Não precisa ter medo, mamãe, é saudável.
– Como tu sabes, meu amor? – perguntei, achando graça na repetição das lições que ele ouvia de minha boca sobre comida saudável, todo dia, toda hora: suco, sim, refrigerante, não; sorvete de creme, sim, merenguinho, não; salada de batata, sim, batata frita, não; peixe frito, sim, bacon frito, não...
– O açude é muito saudável! – respondeu, rindo-se, como a me gozar, mas, na verdade, apenas divertido e faceiro com o muçum.
Como conseguira – eu! – fabricar no meu útero aquele intrépido miúdo? Quantas vezes ele não despertara, no conforto da bolsa amniótica, com as violentas batidas do meu coração covarde? Perdi a conta das noites de insônia matutando sobre o serzinho que sairia de mim; na minha capacidade de cuidá-lo à revelia dos meus pais. Eles sentados ali do outro lado da mesa, ao alcance da minha mão, mas eternamente intocáveis pelo abismo entre nós.
Fiquei mastigando o muçum como se fosse borracha e lutando com a emoção que lá vinha novamente boiar nos meus olhos. Era esse filhote que me alimentava, com sua independência enchia minha vida de sabor. E a cada novo dia, era ele quem me emprestava um pouquinho mais de coragem para enfrentar o futuro de monstros reais que o espreitariam lá longe do açude.